Caríssimo Amigos: Lá fui ao Outono de 1913. Tomei lugar na tipóia do Bairrada Livre, conduzida por Cipriano Simões Alegre, com paragens semanais na Praça do Município e nalgumas povoações dos arredores. Vi Manuel Gomes Júnior, enérgico, perorando pelo Partido Democrático. No dia em que os ciclistas deviam ter percorrido as ruas da vila, fugiu da cadeia um recluso com o índice cefálico 77,55 (15200:190). Dois esquadrões de cavalaria luziram por esses campos em direcção a Nelas e Coimbra. Em Mira, Alberto Sobral anunciava «comidas e dormidas a qualquer hora». Disposto a encontrar um bom lugar para assistir às corridas, desmarcadas pela intempérie e transferidas para 12 de Outubro, cheguei na véspera. Ainda sentado na tipóia, reparei num jovem peralta, de chapéu tombado para a nuca. Comentava a corrida com modos seguros, falando como se lesse. Dizia que a prova de quarenta quilómetros pelo Luso e Pampilhosa era de grande categoria, mas que as duas voltas por Malaposta e Famalicão seriam de uma emoção mais palpitante. Saltei do carro e dirigi-me ao meio da praça, onde o jovem, já rodeado de uma dezena de pessoas, desfrutava a atenção. «O primeiro prémio», dizia ele apoiando-se numa bengalinha de bambu, «são vinte escudos em dinheiro e os outros são objectos de valor. O júri é composto pelos senhores dr. Adriano Cancela, dr. José de Sampaio e Jaime Carolino Pereira Valente. A inscrição está aberta até hoje no Centro Velocipédico Anadiense e os corredores devem inscrever-se por meio de carta acompanhada de cinquenta centavos em estampilhas e declarando em que corrida desejam entrar.» Não tendo obtido dormida na pensão, tive que regressar ao presente e esperar pela carreira da semana seguinte.
Na paragem de 18 de Outubro, a memória das corridas quase se dissipara. O fiacre do Bairrada Livre deixou-me junto à cadeia comarcã, onde também estava Manuel Gomes Júnior, o ideólogo republicano. Ele assistiu decerto às corridas, mas naquela ocasião o tema das suas conversas era a religião. Este ferreiro de Amoreira da Gândara cogitava nas vielas da transcendência e aludia sem subterfúgios às «mentiras da teologia» e à «mistificação» das «tabuinhas» de Moisés. Na praça, o janota baloiçava a bengalinha. E como não tivesse ninguém em seu redor, perguntei-lhe pelas corridas da semana anterior. Ele pigarreou e, sem me olhar, falou assim: «Realizaram-se no passado domingo as corridas velocipédicas promovidas pelo sr. Joaquim Marques dos Santos e que trouxeram a esta vila grande concurso de povo. Na primeira corrida foram vencedores os senhores Alberto Pires, de Mortágua; Dias Maia, de Queluz; e Gil Capela, de Samel. Na segunda foram vencedores os senhores Joaquim Santiago, Frutuoso de Almeida e Francisco Abreu.» E sem atender a mais perguntas, dirigiu-se ao elegante estabelecimento de Justino Sampaio Alegre, o núcleo da conspiração monárquica.
Infelizmente, não pude segui-lo. As viagens no tempo são muito rígidas. Mas já que estava embarcado, deixei-me ir até às estações seguintes na esperança de obter mais detalhes. Nada encontrando, aproveitei a nova funcionalidade da MEO e retrocedi meio ano. Aterrei no sábado, 12 de Abril de 1913, na loja A Velocipédica de Anadia. Encostado à ombreira de onde pendia cordel de barbante e dois aros com pneumáticos, o proprietário senhor Francisco Ramalho anunciava aos seus amigos e fregueses ter recebido «um sortimento de bicicletas de diferentes marcas e bem assim acessórios, que vende por preços resumidos». Mais informava receber «bicicletas usadas» e fazer «todos os consertos, em bicicletas de qualquer marca, por preços baratíssimos». Estive tentado a fazer negócio mas o cocheiro, lá longe, avisou-me que estava interdito o transporte de mercadorias e que, por ser quase noite, era obrigado a dar por concluída a jornada.
No regresso, houve uma coisa que não entendi. Passando pelo dia 7 de Junho, deparei-me com um cavalheiro indignado com os «ditos pornográficos» proferidos pelas mulheres no lavadouro das Fontes e ouvidos pelas crianças da escola primária. Isto percebo. O que me deixou perplexo foi a referência a um bazar cujo «gramofone atira aos quatro ventos, de mistura com o hino nacional, as maiores obscenidades, sem que o dono ou a dignidade do público se sintam vexados ante a presença de muitas crianças que assim vão adquirindo vícios que podem ser a sua desgraça no futuro». Alguém me ajuda? Alguém adivinha qual o teor destas «manifestações da decadência moral de uma sociedade»? Se tal coisa se passasse no animatógrafo que funcionava no teatro da vila, ainda compreendia. Mas as sessões de domingo eram correctas e regradas. Penso eu.
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