Uma ideia artística – Tábua, 29 de Julho de 2015
Hoje, calhou ir a Tábua e almoçar com o João Pedro. Cento e vinte quilómetros com passagem pelo muito amado Moinho do Pisco, pelas grandes natas de Mortágua, pela esbelta nata de Santa Comba Dão, pela casinha do Vimieiro e pelo calor pleno do meio-dia. A canícula, perpetrada no cachaço dos ciclistas, apanhou-os enredados nos cruzamentos, confundidos por indicações que não servem as bicicletas, indecisos à entrada da auto-estrada, falseados por uma automobilista. Valeu-lhes o João Pedro, que foi o primeiro carro-guia que alguma vez estas viagens cíclicas tiveram.
Não escondo o esforço necessário para retomar a viagem após o almoço. O Escrivão colocou o problema mais ou menos nos seguintes termos: como se pode explicar a alguém indiferente o que leva três homens sensatos, de férias, a enfrentar as dificuldades das subidas, da distância e do calor, às duas e meia da tarde, quando o sol abrasa e a digestão mal começou? O Escrivão descrê de qualquer esclarecimento. Ainda que a polidez leve as pessoas a moderar a expressão dos juízos, aqueles três homens hão-de por força ser tomados por doidos, exagerados, insensatos, extravagantes, indivíduos a quem a idade tarda a produzir efeito. Essa opinião aguarda, em inconfessada esperança, que a natureza se exerça e os traga ao sedentarismo de onde, para seu sossego, nunca deviam ter fugido.
É espantoso como se podem ter pensamentos tão elevados enquanto o sol faz brilhar os braços e as inclinações recomendam que se olhe apenas para a roda. Isso dá-me uma ideia artística. Tomem o caminho de Roma, percorram a desassisada avenida até ao monumento a Vittorio Emanuele II, contornem-no, ponham as bicicletas às costas e subam as escadas do monte Capitolino. Nesse espaço, desenhado por Miguel Ângelo, está a magnífica estátua equestre de Marco Aurélio. O imperador que foi filósofo domina a montada. Sereno, ergue o braço à altura do ombro, abre a mão e com a palma voltada para baixo protege o império, os súbditos e, quero pensar, as mulheres e os homens de boa vontade que nasceram para cá de 476 depois de Cristo. Ponham-se os ciclistas ao lado dele, montem os vossos velocípedes e provem, através da quietude do gesto, que assim como Marco Aurélio pôde escrever preclaros pensamentos no meio de campanhas sangrentas contra os partas e os germanos, vocês ousaram meditar sobre a natureza humana enquanto investiam na serra, não propriamente apesar da dureza dos elementos mas por causa deles.
Dito isto, parece frívolo referir que o regresso se fez pelo Buçaco e que os primeiros quatro quilómetros da subida após Mortágua são desgraçados, difíceis e malquistos. Mas foram devidamente enfrentados e cumpridos. Há imagens em movimento de dois ou três instantes. O Escrivão está aqui a dizer-me que precisa de alguns dias para lhes dar um jeito.
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