Updates from Maio, 2020 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • ruigodinho1962 15:38 on 31/05/2020 Permalink | Responder  

    Presos por elásticos 

    Pastelaria Mica-Vina (Águeda), último de Maio do ano do confinamento
    Sim, desconfinámos nesta padaria-pastelaria, de que nunca tínhamos ouvido falar. Mas ficámos bem impressionados, apesar do duplo Pecado Original. Duplo, porque o Vendedor se deparou com uma maçã indigna da própria serpente e, portanto, directamente confinado à sesta repartição (fazia lembrar aquela celebérrima capa da revista Time de 22 de Julho de 1946); e também porque encontrámos uma boa variedade de pastelaria, mas nem uma nata!!!
    E foi nesta pastelaria porque nenhuma outra estava disponível para nós, cumprindo um encerramento por algum motivo (Covid? Descanso semanal? Férias? Outra causa qualquer?).
    Os cinco cíclicos foram até Águeda pela estrada do interior, que é como quem diz, via Boialvo, Belazaima do Chão (terra bem arrumadinha, tirando a subida que a atravessa) e Bolfiar.
    Mas na Póvoa de Vale do Trigo houve uma saída da rota, em direcção a S. Martinho. Cumprimos um desejo antigo do nosso Vendedor, que nos presenteou com a visão do que foi outrora uma árvore (atingida por um raio? seca por outro motivo? o Vendedor por favor que esclareça!), transformada numa belíssima escultura, feita essencialmente com moto-serra e que as imagens documentam.
    Os elásticos vieram antes e depois disto tudo.
    Primeiro, numa das belas conversas sobre Física, nas quais o nosso Físico faz jus ao nome. Entre outras curiosidades, ficámos a saber da existência de um outro Físico, de personalidade no mínimo curiosa, de seu nome Richard Feynman (prémio Nobel em 1965) e da forma como demonstrou a falha do Vai-vém espacial Challenger. No âmbito da Rogers Comission Report, usou um simples elástico que, depois de esticado várias vezes, foi mergulhado num copo de água gelada; retirado do copo, não resistiu ao manuseamento, partindo-se em vários bocados.
    Esta situação encontra-se descrita em http://www.feynman.com/science/the-challenger-disaster/.
    Feynman morreria menos de dois anos depois, vítima de dois cancros, o que o levou a afirmar: “Eu odiaria morrer duas vezes. É tão tedioso.”
    O outro elástico serviu para prender algumas das peças de vários cíclicos, em momentos mais delicados deste circuito. Mas que permitiram uma chegada a bom porto…

     
  • nunorosmaninho 11:17 on 28/05/2020 Permalink | Responder  

    Carta de Lorvão 

    Em Anadia, nascera há quarenta e sete anos o filólogo Manuel Rodrigues Lapa, homem íntegro, duro, independente, defensor da liberdade, crítico do Estado Novo, que não sei se amaria o desporto. Vivia em Lisboa e regressava à Bairrada para reencontrar as origens, como é normal e, às vezes, imperativo. Talvez tenha sentido prazer – se dela teve conhecimento –com a vitória do Sangalhos Desporto Clube na corrida de cem quilómetros disputada nos arredores de Lisboa, em Abril de 1944.

    Por esses dias, Manuel Rodrigues Lapa permanecia sozinho em casa. A esposa estava em Anadia até ao dia 8 e o filho fora com ela visitar Penacova e Lorvão, de onde enviou uma carta. Aquilo que hoje se mostra, à pressa, em vídeo instantâneo no Facebook ou no Instagram, era pensado com uma caneta nos dedos, dito num rascunho e passado a limpo para seguir pelo correio. Nada me fascina mais do que o ar do tempo. E essa carta mostra o que era a vida nesse ano em que Túlio Pereira venceu com mérito a corrida de Lisboa.

    «Meu querido Pai», escreve Armando, o passeio a Lorvão «não foi de todo mau». «A estrada para lá», diz ele, com aquela sensibilidade de caminhante ou ciclista, «é sempre a subir até aproximadamente dois quilómetros da povoação; aí começa uma descida bastante íngreme e aos ziguezagues, no fundo da qual está o convento com um miserável aspecto exterior». Estamos em plena guerra mundial. Os Aliados preparam o desembarque na Normandia. Em Portugal, vive-se em racionamento e miséria. «A povoação em si é pobríssima; basta dizer que há mais de um ano que não comem pão por não haver qualquer padaria na terra. Fomos perseguidos por um enorme bando de enfezados petizes, sujos e cheios de fome.» O património não vai melhor. «O convento é parecidíssimo com o de Arouca e, segundo me disse ontem o dono da Pensão, já esteve a saque por intermédio de um padre que roubava às descaradas. Fugiu para o Brasil e ainda hoje se encontram bocados de cantaria na região. Os mosaicos antigos foram comprados pelo dr. Bissaia Barreto e estão na casa dele.»

    Armando e a mãe comeram broa e queijo e beberam cerveja e laranjada numa taberna, e voltaram a Penacova pela estrada que passa por Chelo. «Matei nesta estrada», confessa ele, talvez com orgulho, ignorando o quão seria reprovado hoje, «uma pequena cobra que a Mãe afirmou ser uma víbora; mas não sei se terá razão.»

    Outra vez em Penacova, viu passar a procissão, admirou a vila engalanada e foi pescar ao rio. «Ontem trovejou aqui bastante e hoje também não está grande coisa o dia: vamos a ver se amanhã se pode dar algum passeio.» Não sei quem é a Margarida, mas ela manda cumprimentos para todos. «Eu envio um abraço para os Avós e outro para ti do filho amigo

    Armando ».

     
    • mferreirarodrigues 18:56 on 28/05/2020 Permalink | Responder

      … que maravilha! Vou guardar esta crónica, como já guardei algumas outras, separadas das muitas, se calhar todas, que estão no grande baú que é a minha caixa de correio!

      É um texto que dá esperança num mundo melhor!

      Afinal não é tudo igual! Sempre houve gente capaz de dizer Não, capaz de pensar pela sua própria cabeça e, melhor ainda, que conseguiu ver sem as palas das justificações mal amanhadas pelos poderes estabelecidos. Se o Herculano pudesse ler o que ele diz do Lorvão…

      Gostei muito.Gostava muito do Manuel Rodrigues Lapa, mas agora começo a descobrir o filho! Grande filho! Grande pai!

      Um abraço com votos de saúde. Se possível também no selim da bicicleta!

      M

    • nunorosmaninho 20:51 on 28/05/2020 Permalink | Responder

      Olá, Manel! Agradeço-te muito o comentário e fico ainda mais contente por teres gostado. É uma bela carta. E, quando elas são boas, melhoram quem as escreve e quem as lê. Abraço!

  • nunorosmaninho 16:17 on 25/05/2020 Permalink | Responder  

    Esta semana – Praia de Mira, Cantanhede, Vale de Cambra, 24 de Maio de 2020 

    Esta semana, o Rúben enviou-me os gráficos da sua subida ao Moinho do Pisco. Na posse dessas imagens e das informações conexas, estou em condições de explicar como é que ele procedeu. O amigo leitor sai de Sepins, pedala a uma velocidade que não pode baixar muito dos trinta e cinco por hora e, ao chegar ao sopé, ataca a inclinação com energia. Quanta energia? De Boialvo até ao topo são 5660 metros. Eu fico contente quando, no início, me ponho nos dez ou onze quilómetros por hora e, mais adiante, toco nos catorze. A última curva pouco conta, uma vez que já tudo se decidiu nuns animadores vinte e oito minutos. Para fazer como o Rúben, basta subir tudo a 18,9 por hora. Em 17 minutos e 58 segundos, estará no topo.

    Esta semana, de acordo com um Strava muito manhoso, que me deixou ver muitas coisas e agora as oculta, o Rúben saiu várias vezes, o Jorge chegou a fazer uma volta de duzentos quilómetros, o Informático Ferroviário andou pelo Buçaco, o Físico pelo concelho de Anadia e eu nas Gafanhas. Hoje, o Vendedor, o Periglicófilo, o Físico e o Peninha foram à Praia de Mira e tomaram, enfim, o seu café e a sua nata, como se lê na nota antecedente. O Informático Ferroviário realizou uma visita solitária a Cantanhede. E eu, quase à mesma hora da tarde, quando o calor ainda feria, fui de Pessegueiro do Vouga a Vale de Cambra e regressei, ganhando nisso um desnível acumulado de 992 metros, que espero me seja útil quando regressarmos, em breve, à serra da Estrela.

     
  • ruigodinho1962 13:39 on 25/05/2020 Permalink | Responder  

    Eis a Nata!!!… 

    Praia de Mira, 24 de Maio de 2020

    Eis que chegou o dia de saborear, finalmente, uma natinha, a meio de uma viagem cíclica!!!
    Nada o fazia prever, mas estacionados no passeio junto à praia surgiu essa ideia. Há duas semanas praticamente não havia pastelaria, pelo que se colocou a hipótese de um café.
    como ninguém foi equipado com máscara, ao esbarrarmos com os avisos de obrigatoriedade da sua utilização e do atendimento ao balcão, o ânimo decresceu bastante.
    Mas a menina de serviço, interrogada, dispôs-se a servir-nos na esplanada, ou melhor dizendo, a trazer o tabuleiro à porta para utilizarmos o espaço exterior.
    E assim aconteceu!
    Em qualquer viagem tudo isto seria, como tantas vezes se ouve por aí, um não-assunto. Tornou-se assunto pelas circunstâncias especiais que vivemos.
    O Covid não abranda, mas nós acelerámos, rumo a alguma forma digna desse nome e que alimenta alguns sonhos na mente de alguns cíclicos.

     
  • nunorosmaninho 11:19 on 20/05/2020 Permalink | Responder  

    Túlio Pereira 

    A vitória de Túlio Pereira nos cem quilómetros dos arredores de Lisboa foi «tudo quanto há de mais normal e justo», num atleta de valor e fogoso. Isolou-se a meio da prova. Esperem. Afinal, o corredor-locomotiva de que fala o jornalista é outro, Joaquim Fernandes, que, em 1937, procedeu do mesmo modo. O título vale para os dois. Ao lançar uma fuga à moda antiga, Túlio Pereira impôs um ritmo que os adversários tentaram acompanhar e do qual, um a um, abdicaram. Nessa Primavera de 1944, o atleta do Sangalhos Desporto Clube «forçou toda a gente a vir em sua perseguição e de tal maneira o fez – quanto mais o perseguiam mais ele fugia – que, quando o grupo “caçador” renunciou à luta, renunciou porque já não podia mais…» O vento, o «calor de trovoada» e o esforço realizado entre a Ericeira e as proximidades de Loures abalaram os adversários sem o fazer tombar a ele. «Quando cederam, cederam de vez.»

    Gil Moreira, o narrador desta corrida, avalia a prestação nos seguintes termos: «Pode, portanto, considerar-se normal – e merecida, até – a vitória de Túlio Pereira, que no domingo ganhou a sua primeira corrida de independentes. Quer dizer: o que ele não pôde fazer em 1942 (depois de uma fuga também audaciosa, foi alcançado perto de Loures) fê-lo no domingo – e, por sinal, com certo brilhantismo.» Os adversários chegaram à meta «mais fatigados do que o normal em competições desta quilometragem», que na verdade, por causa de um erro de percurso, se cifrou nos 105 quilómetros.

    Túlio Pereira venceu com 3 h. 10 m. 15 s. João Lourenço, do Sporting, foi segundo, Rebelo, da Iluminante, terceiro, e José Martins, também do Sangalhos, em quarto, todos com 3 h. 12 m. 52 s. Noé, o outro atleta do Sangalhos, chegou em décimo. Se houvesse classificação por equipas, a vitória teria cabido ao Sangalhos, em igualdade pontual com o Sporting.

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  • nunorosmaninho 18:50 on 17/05/2020 Permalink | Responder  

    Dor de burro – Moinho do Pisco, 17 de Maio de 2020 

    Pensei chamar a esta nota Escada de Jacob. Foi nela que pensei quando, numa das últimas curvas do Moinho do Pisco, vi uma estrada muito nítida, que subia entre pinhais recém-cortados, tão a pique que parecia chegar ao céu. Perguntei ao Físico se aquela era a rampa de Agadão, porque nunca a tinha visto assim, e ele disse que sim. Já os amigos esperavam por nós, à sua beira, sem lhe porem os pés nos degraus.

    Preferi Dor de Burro, uma epígrafe sem nada de bíblico, excepto na menção ao cordial jumento que transportou a sagrada família na fuga para o Egipto. Depois do encontro no Patrocinador, de um furo do Periglicófilo na Malaposta, da estrada em obras que passa pela Figueira, de termos perdido o Vendedor, que seguia na frente, de passarmos por caminhantes a gozar o calor e o sol, de vislumbrarmos ciclistas que desciam o Moinho do Pisco numa velocidade louca e de nós próprios o termos subido e descido, quis saber o que se tinha passado na frente da corrida. O Vendedor impôs a marcha, quem o seguiu chegou em vinte e nove minutos e meio, o Informático Motard estava satisfeito e o Periglicófilo também. Perguntei ao Peninha como se tinha sentido. Ele disse-me que bem, apenas com dor de burro, e levou a mão ao abdómen. O Vendedor ia calado, depois de, ao que sei, ter pedido silêncio no esforço da escalada. Segue-se o seguinte diálogo:

    Informático Motard – O Vendedor é que está bom!

    Peninha – Anda que nem um cavalo!

    Vendedor – Eu? Tu é que tens dor de burro, e eu é que ando como um cavalo?!

    Dito isto, acelerou e levou-nos todos atrás, pelos quilómetros de descida branda, até à casa do Informático Motard, onde se tomou café e comeu bolo da Páscoa.

     
  • nunorosmaninho 18:44 on 17/05/2020 Permalink | Responder  

    O trio na Praia de Mira 

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  • nunorosmaninho 18:03 on 11/05/2020 Permalink | Responder  

    Andar de bicicleta na pandemia – Anadia, Praia de Mira e Ílhavo, 10 de Maio de 2020 

     

     

    Sabem o que é andar de bicicleta na pandemia de 2020: os amigos trocam mensagens no grupo de WhatsApp, decidem assim o que vão fazer no domingo, saem conforme o que combinaram e expõem o resultado no Strava. A partir de 4 de Maio, os praticantes de ciclismo podem treinar na via pública sem limite de tempo nem de distância, desde que mantenham dois metros de distância, quando seguem lado a lado, ou quatro, se forem em fila. Isto é como andar sozinho. O Periglicófilo, a sair de uma paragem de três meses, sugeriu poucos e lentos quilómetros. O Físico apoiou-o. O Vendedor completou o trio que se encontrou às nove da manhã no Patrocinador. O Informático Motard disse que não podia sair. O Peninha também ficou em casa. O Informático Ferroviário, prudente, decidiu andar sozinho. Eu fiz o mesmo.

    O WhatsApp mostra o que sucedeu nos dias anteriores. Chegou a notícia de que o Informático Motard subiu o Moinho do Pisco. O Rúben também andou por lá, esse malandro, e declarou tê-lo escalado em apenas dezassete minutos, que pouco passa da metade daquilo que as nossas forças permitem. Peço-lhe que nos ceda o registo no Strava, porque com ele, vendo como fez, talvez o consigamos igualar. O Físico tem andado com regularidade pelas estradas de Avelãs de Cima e Anadia. Eu aproveitei o vento fraco e, com extremo cuidado nas rotundas, fiz duas saídas de cem quilómetros pelas matas das Gafanhas.

    No domingo, registaram-se três viagens cíclicas. A trindade atrás referida foi de manhã à Praia de Mira, andando nisso entre sessenta e cinco e oitenta quilómetros. Há fotografia comemorativa. Ao início da tarde, o Informático Ferroviário também foi à Praia de Mira e fotografou o areal deserto. Ao fim da tarde, voltei às planuras de Ílhavo e andei noventa quilómetros, sem fotografia. Se na terça-feira, dia feriado em Aveiro, não chover, talvez empreenda uma volta de Pessegueiro do Vouga a Vale de Cambra para me lembrar do que é subir.

    Não consegui extrair as imagens do Strava. Ponham-nas aqui.

     
  • nunorosmaninho 17:52 on 09/05/2020 Permalink | Responder  

    O corredor-locomotiva do Sangalhos 

    O mês de Abril de 1944 foi rico em corridas de bicicletas. Esta frase optimista nasceu-me ao observar, nas páginas da revista Stadium, provas de cem quilómetros, campeonatos distritais e a vitória assinalável de um atleta do Sangalhos Desporto Clube.

    Em final de Março, foi muito apreciado o IV Circuito de Lisboa. Os ciclistas andaram por Encarnação, Caneças, Belas. Algés e Alcântara, numa luta «cerrada e emotiva». Gil Moreira, o especialista em serviço jornalístico, antigo atleta, aprecia o esforço harmonioso de um bom corredor, como é o caso do sportinguista João Lourenço. Ele «sabe e pode, quando quer,» escreve Gil Moreira, «perseguir um pelotão, marchar tão uniforme[mente] e com tal ligeireza de movimentos que até dá a sensação de pouco ou nada custar correr de bicicleta…» Infelizmente, para João Lourenço, os adversários aproveitaram a sua queda para imprimir uma «cadência de 95 pedaladas por minuto».

    No princípio de Abril, em dia ventoso e com «calor de trovoada», disputou-se, pelas estradas da Ericeira e Caneças, uma corrida de cem quilómetros. Túlio Pereira venceu com ousadia, isolando-se a meio da corrida e fazendo justiça ao cognome de corredor-locomotiva, que há anos eu próprio atribuí ao Periglicófilo, quando ele me rebocou a uma velocidade louca para não chegar atrasado a um almoço dominical. Quem é Túlio Pereira? Isso merece ponderação. É um dos três corredores do Sangalhos Desporto Clube classificados nos dez primeiros lugares.

     
  • nunorosmaninho 15:45 on 04/05/2020 Permalink | Responder  

    Elogio bucólico do amola-tesouras 

    Sábado, dia de descanso intermitente. A rua está silenciosa porque se vive em pandemia e a manhã mal começou. Há-de ser um dia de sol, raro nas últimas semanas, mas, para começar, tem o frémito negro de um conto de Mary Shelley, que estou escutando. Percebe-se a claridade do céu pelo som refulgente da gaita de um amola-tesouras. Peço-vos que o imaginem a deslizar a mão esquerda na boca enquanto a direita conduz a bicicleta, onde uma engenhoca de rodas e correias põe a girar a pedra de afiar. Para esse efeito, basta que alguém o chame e, sem saber o preço, lhe entregue as facas e tesouras, contra as quais andou anos a reclamar na pressa da cozinha. Quem lhe confiar, vamos supor, uma dúzia e meia de facas e duas tesouras da poda, não regressa à fantasia lúgubre de Mary Shelley, mas ganha um curioso impulso neo-realista, no qual o presuntivo explorador se descobre explorado. O pobre ciclista, nos vinte minutos em que, tranquilo, arrancou chispas pouco homéricas dos gumes rombos, obteve o irrefragável direito capitalista de solicitar, com humildade, sessenta e cinco euros pelo trabalho. Agradece. Arruma a engrenagem que o mantinha a pedalar no sítio, ajeita o boné, preto como o resto do vestuário, e toca outra vez a alegre gaita, que acorda os cães e os faz ladrar sem ideologia nenhuma.

     
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