Updates from Abril, 2016 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 08:35 on 29/04/2016 Permalink | Responder  

    Continua a faltar dinheiro para o ciclismo 

    O diálogo com o Anastácio levou-nos duas vezes ao Largo do Castelo. Na primeira, demos a volta pelo Laboratório Químico. Na segunda, depois da visita ao jardim do Paço das Escolas, passámos pela Igreja de S. Pedro e pelo aqueduto. A parede alta que sustentava as terras e as fundações das torres de menagem deu-me má impressão. E era nisso que pensava quando os episódios das deportações se esgotaram e eu concluí que chegara o tempo de voltar às corridas de bicicletas.

    A brisa recrudesceu. Havia pessoas a caminhar para todo o lado, mulheres de açafate à cabeça, estudantes bem trajados, crianças em grupo. Das mercearias e cafés voltados para a Rua Larga, vinha o ruído das conversas.

    Estão a ver o que é o tempo? Diziam-me que Joaquim Rosmaninho tinha engordado na Volta a Portugal, e ei-lo a lutar com os melhores. Desvalorizaram-lhe a vontade, e agora vejo como foi difícil manter o espirito competitivo no meio dos trabalhos agrícolas, das dificuldades económicas e da falta de tempo para treinar. Tinha escutado ao avô Maneco vagas referências às suas digressões ciclísticas, e encontro-o competindo com desembaraço. Apesar destas boas surpresas, parto para a época de 1932 sem as expectativas de 1930. O país empobreceu. Falta dinheiro para o ciclismo. Acabou o duelo entre Prior e Rosmaninho?

    Comecei a sentir um ronronar vindo da terra. O som cresceu, misturado com vibrações metálicas, desapareceu durante um segundo e voltou mais forte. Na nossa frente emergiu um eléctrico. O carro rugia, trepidava, ganhava a nossa atenção, crescia enquanto se aproximava.

    – O que é isto, Anastácio?

    – A grande novidade de Coimbra em 1932. O carro eléctrico chegou à Universidade.

    – Ora! Isso é um disparate.

    – Tem razão. Os eléctricos não são de agora. Mas é nova a linha que vem da Rua Padre António Vieira e passa pelo Arco do Bispo.

    O barulho dominava tudo. E embora me tivesse aproximado do Anastácio, não percebi o que ele disse.

    – O quê?

    – Veio pelo Arco do Bispo!

     
  • nunorosmaninho 12:11 on 28/04/2016 Permalink | Responder  

    Ir de bicicleta até à África do Sul 

     
  • nunorosmaninho 11:14 on 28/04/2016 Permalink | Responder  

    Notas confusas sobre a Ditadura Militar em Anadia 

    O Anastácio, que me ia ouvindo narrar os aspectos principais da conversa com Belisário Pimenta, não perdeu de vista a pergunta que tinha feito:

    – A fortaleza de Floro Henriques é carácter, teimosia ou impossibilidade de rejeitar quatro anos de exílio? Sabe que nesse tempo não faltam casos de deportação, mesmo em Anadia.

    – Em Anadia?

    – Se for ao seu dossiê sobre o dr. José Rodrigues, encontra notas de duas entrevistas sobre o assunto.

    – Tenho uma fraca lembrança.

    – Deixe-me então resumir o caso. – Isto foi o princípio de uma curiosa inversão de processos, em que o Anastácio falou daquilo que, tendo eu escrito, eu próprio devia contar. – Em 13 de Dezembro de 1995, o filho do dr. José Rodrigues comentou as circunstâncias em que o pai, advogado, autor de O Couto de Aguim, tinha sido preso no tempo da Ditadura Militar. E o senhor Escrivão, que deve ter tido esta conversa no café, tomou as seguintes notas: «No momento em que foi preso, o dr. José Rodrigues preparava-se para fazer as provas do concurso nacional para notário. Já no Aljube, obteve autorização para as realizar, o que fez, tendo sido aprovado. No entanto, saído da prisão, receou dificuldades e represálias se se candidatasse a um lugar no funcionalismo público. Por esse motivo, optou pela advocacia em Anadia, onde aliás tinha feito estágio com Virgílio Pereira da Silva.»

    – Qual o motivo da prisão?

    – Isso agora… O senhor Escrivão é pouco claro, para não dizer que é confuso. Em 17 de Janeiro de 1997, mais de um ano após o diálogo que deu origem a este apontamento, retomou o tema à mesa do Café Anadia e acrescentou os seguintes aspectos, que eu entendo mal e o senhor, pelos vistos, também não sabe esclarecer: «O dr. Vergílio Pereira da Silva foi a Leiria buscar um veículo militarizado (tractor transformado?).»

    – Isso é absurdo! Para que queria ele o tractor transformado? O que é um «tractor transformado»?

    – O senhor é que escreveu. Deixe-me prosseguir a leitura. «Por causa da polícia, evitou a Estrada Nacional n.º 1 e veio pela Figueira da Foz. No caminho, por troços de estrada macadamizada, a carga voltou-se, tendo recebido a ajuda de populares.»

    – Qual carga?

    – Sei lá! «Chegou a Anadia com o veículo em cima da camioneta num domingo à tarde, quando, como era habitual, se procedia a uma hasta pública no tribunal. O veículo foi por isso muito notado»

    – Estou a ver… O tractor transformado veio numa camioneta. Era ele a carga. Ainda não percebi para que o queria o dr. Virgílio Pereira da Silva. Alguma insurreição…

    – As suas notas manuscritas continuam assim: «Não surpreende, por isso, que a polícia tenha tomado conhecimento, se é que não foi a própria PVDE a criar a situação, armando uma cilada com aquele veículo que alegadamente viria já de Lisboa. Para que serviria ele?»

    – Passados vinte anos, só sei o que está escrito.

    – «O veículo foi depositado na fábrica de cerâmica. No dia seguinte, segunda-feira, o dr. José Rodrigues, então estagiário de Virgílio Pereira da Silva, entabulou conversa casual com Artur Sereno, de Anadia, que lhe perguntou que veículo era aquele. José Rodrigues, conhecedor do facto, informou-o. Preso Artur Sereno pela PVDE, confessou a fonte da informação e José Rodrigues também foi preso.»

    – Prossegue. Isto há-de chegar a algum lado.

    – «Na iminência de ver o filho deportado para Timor, na leva em que foi o próprio dr. Virgílio, o pai de José Rodrigues procurou auxílio no dr. Delfim de Almeida, de Bolho ou Vilarinho do Bairro. Foi ao Palace Hotel da Curia, onde ele se encontrava a passar as férias de Verão, e pediu-lhe que intercedesse, o que este fez dirigindo-se ao ministro Vicente de Freitas, que era frequentador do Palace. Vicente de Freitas sugeriu que José Rodrigues escrevesse o que realmente acontecera. Com este procedimento, José Rodrigues não foi deportado para Timor, mas acabou por inaugurar o forte de Peniche, onde conheceu Vasco da Gama Fernandes.» Neste ponto – disse-me o Anastácio com um olhar de censura –, o senhor escreveu que o regime de prisão aberta lhe permitia circular pela vila e que antes esteve detido no Aljube. «Esteve preso cerca de um ano. Na altura tinha 22 anos.»

    – Mais alguma coisa?

    – Parece ter sido Celestino Neto, escrivão no tribunal e director do jornal Independência de Águeda, que lhe sugeriu que concorresse para notário. E foi nessa conjuntura, como vimos, que ele foi preso. José Rodrigues estudou na prisão e apresentou-se a exame acompanhado por um polícia da PVDE. O senhor diz que «passou no exame e confraternizou com o polícia».

    – Eu limitei-me a transcrever as palavras do filho do dr. José Rodrigues.

    – Mas olhe que isto é estranho. Falta aqui algum contexto ou alguma explicação. Parece um elogio da polícia política! Sobretudo porque a seguir o dr. José Luís Rodrigues lhe disse que o pai combinou fazer saídas ao Estoril, com aquele nefando elemento durante o Verão, facto que acabou por ser superiormente descoberto e proibido. O senhor Escrivão desculpe-me, mas tudo isto é estranho e, em certos aspectos, incompreensível. Devia fazer uma terceira entrevista ao filho do dr. José Rodrigues.

    – Talvez! Mas não confundas mais. José Rodrigues lá esteve um ano na prisão. E Virgílio Pereira da Silva, nascido em 1888, rijamente festejado em Julho de 1917 por ter concluído a licenciatura em Direito, não se livrou da deportação em Timor.

    – Bem, sendo assim…

    – Noutro dossiê tenho uma dezena de folhas sobre Virgílio Pereira da Silva. Por elas verifico que o jornal A ideia Livre, de Anadia, começou o mês de Janeiro de 1932 com uma notícia intitulada «Deportados políticos»: «No dia 10 do corrente sai de Macau o vapor Chinde, no qual regressam à metrópole alguns dos deportados políticos que tinham ido para Timor, entre os quais os nossos conterrâneos srs. Virgílio Pereira da Silva e Artur Sereno. Quem desejar escrever-lhes pode fazê-lo para Lourenço Marques.»

    – Enquanto aqui andamos a passear por Coimbra, em Anadia o dr. Virgílio Pereira da Silva tem a vida desorganizada e incerta.

    – É o ar do tempo, amigo Anastácio. No dia 22 de Julho, A ideia Livre, que tenta fazer oposição local ao regime, insere a seguinte nota: «O sr. dr. Mário Pais de Sousa, ex-ministro do Interior, converteu em suspensão por dois anos a pena de demissão que havia sido imposta ao nosso estimado amigo sr. dr. Virgílio Pereira da Silva. O nosso maior desejo seria noticiar aos leitores a completa anulação da pena. No entanto, devemos confessar que nos agradou a modificação operada na condenação daquele republicano. E lembramos que a obra de justiça fica imperfeita enquanto não abranger também o sr. Artur Sereno.»

     
  • nunorosmaninho 10:09 on 26/04/2016 Permalink | Responder  

    As previsões realizadas – Cantanhede, 25 de Abril de 2016 

    O dia de hoje esteve ainda mais quente. De manhã, o escrivão foi um agricultor de ocasião. Mas à tarde, enquanto o Físico expressava o seu ardor pela liberdade e pela democracia, acompanhou os informáticos a Cantanhede. Esse foi o ensejo para saudar o regresso daquele que é Motard e chega ao fim de Abril com apenas duzentos quilómetros. Notem que o Ferroviário vai nos mil e seiscentos. E o escrivão já teria alcançado os mil se não passasse tanto tempo a saracotear-se na zumba.

    Os perfumes da Primavera sofreram dois desaires. Um de natureza poética, porque se discutiu a presença das laranjeiras. O escrivão assegurou a veracidade da menção e alegou o testemunho do Físico. O outro desaire tem um sentido prático e ocorreu em Horta quando aos pulmões inflados pela subida chegaram os potentes eflúvios da plantação de batatas. É preciso dizer que a hora vespertina, conquanto mais favorável à prática da força, perde a luminosa promessa das manhãs. E de qualquer modo, como escreveu o arguto Félix Krüll, cavalheiro de indústria, na página quarenta das suas confissões: «Pensando bem, qual é o momento em que o verme luzidio se mostra sob o seu aspecto real? É quando, faúlha poética, voga no seio da noite de estio, ou quando, vil e mesquinho, se torce na palma da nossa mão? Não te atrevas a decidir.»

    Na esplanada da Nova Cidade, compareceu o pequeno Tomás segurando um coelhinho de pelúcia pela cauda. Acordou para vir tomar o seu leitinho com os ciclistas, enroscado no colo da mãe.

     
  • nunorosmaninho 19:05 on 24/04/2016 Permalink | Responder  

    Os perfumes da Primavera – Portomar, 24 de Abril de 2016 

    Os perfumes da Primavera vêm das glicínias e laranjeiras. Emergem com a intensidade do sol enfim absoluto. Espalham-se com a brisa que impele o Físico a grandes velocidades. Aquietam-se com a doçura tenra dos pastéis de nata. Empolgam as atracções do motociclismo no Corticeiro. Provocam os prazeres da mesa. Acrescentam limpidez ao canto dos pássaros. Afastam os medos da noite e da moral. Guiam o Periglicófilo para a Beira Interior e o Informático Motard para um passeio de mota. Aceleram a corrida entre Portomar e Covão do Lobo. Encorajam a conversa sobre os enchidos de mel de Trás-os-Montes. Animam o Rúben na sua quinta prova. Fazem o videasta pensar em outros vídeos e nas músicas deles. Impelem às cabriolas sem mãos no guiador e à ideia da posição em fuzil. Dão cadência ao Informático Ferroviário, que não teve chamadas de urgência. E talvez conduzam, já amanhã, a um regresso às bicicletas.

     
  • ruigodinho1962 07:44 on 24/04/2016 Permalink | Responder  

    Serra da Estrela 

    Neste fim de semana prolongado troquei as voltas de bicicleta por um circuito turístico em automóvel, com a família. Depois de tanta paragem por causa da chuva é caso para dizer “perdido por cem, perdido por mil”!

    O destino foi uma pequena e super sossegada aldeia perto do Fundão. O percurso incluiu a travessia total da Serra da Estrela. E é uma sensação estranha fazer de carro o que em algumas semanas fiz várias vezes de bicicleta! Muito menos cansativo, mas muito mais “stressante”!!! Confesso que, apesar das dificuldades físicas, subir a Estrela de bicicleta sabe imensamente melhor.

    Mas já aviso os ‘experts’ das subidas: pela amostra que foi descer para a Covilhã, aquilo é mesmo muito duro! Aflitivo… Subir, para mim, está fora de questão (pelo menos com esta bicicleta); descer, então, só se for a pé! Não posso ter a certeza, porque os meios de locomoção são diferentes, mas a subida da Covilhã deixa a de Loriga bem longe, em termos de dureza. Pode ter algumas zonas de “descanso” (se é que me entendem…), mas as inclinações brutais são muito mais extensas. Só sei que cheguei à Covilhã com um certo nervoso pela dureza da descida.

    Isto de subir a Estrela tem muito que se lhe diga!!!…

    RICOH IMAGING

    RICOH IMAGING

    RICOH IMAGING

    RICOH IMAGING

     
  • nunorosmaninho 11:05 on 20/04/2016 Permalink | Responder  

    Em todos os tempos ocorrem personalidades admiráveis 

    Quando disse que faltava a ilustração de um carácter íntegro, não esperava a pergunta absurda do Anastácio:

    – O que é um carácter íntegro?

    Não soube o que lhe responder fora do quadro das virtudes teologais e cardinais. Belisário Pimenta aprecia a fortaleza de ânimo: não aceitar as circunstâncias injustas, não ceder à vantagem pessoal, lutar pelas convicções, nunca perder a razão dos próprios actos. Em 1932, ele via muita gente a acolher-se à dissimulação e, de vez em quando, alguém insubmisso. Uma destas criaturas singulares regressou a Coimbra depois de anos de exílio. Belisário Pimenta reencontrou-o.

    – Saiba V.ª Ex.cia (é assim que se fala em 1932) que foi para mim uma grata surpresa voltar a falar com o Floro Henriques, «regressado da sua deportação de 4 anos e 3 meses – quási como as deportações do tempo de D. Miguel». Visitou-me no dia 10 de Março, à noite. E sabe o que lhe digo?

    Eu não podia saber o que me queria dizer e por isso limitei-me, por educação, a expressar mais atenção. Cheguei-me à frente. Belisário fez o mesmo.

    – «Gostei de o ver. Vem mais queimado, talvez, mas bom de saúde e até dá a impressão de que os quatro anos de descanso forçado lhe fizeram bem. E notei uma coisa curiosa: os quatro anos de deportação e os prejuízos que daí lhe vieram, não lhe tiraram o seu feitio fantasista. Até, talvez, venha mais agarrado ao sistema antigo de julgar as coisas por prisma diferente do de toda a gente. Isto é sinal de firmeza de ânimo e de carácter rijo que não foi abaixo com tanta trapalhada e danos correspondentes.»

    Feito o elogio do carácter, Belisário Pimenta recostou-se outra vez.

    – «Agora, aí anda a tratar da questão judicial contra o seu antigo sócio, Raul Fernandes, que parece que o espoliou com unhas e dentes, abusando da boa-fé da esposa do Floro que cá ficou com procuração completa. E o caso anda por muitas centenas de contos – uma brincadeira.»

     
  • nunorosmaninho 14:03 on 18/04/2016 Permalink | Responder  

    As hesitações da Primavera – Cantanhede, 17 de Abril de 2016 

    Abril vai terminar sem conhecer o sol absoluto da Primavera. Tão incerto é o tempo, que um mestre da meteorologia como o Periglicófilo se vê obrigado a retardar as previsões. Já o Escrivão nunca tem dúvidas e erra sempre. Ao fim da noite de ontem, ocupado em tarefas urgentes e inadiáveis, deixou sem resposta a convocatória. Às oito da manhã, viu a luminosidade e confirmou logo a comparência. Às nove horas, chovia.

    E assim o Paulinho regrediu para casa, o Informático Ferroviário foi comer uma francesinha a Campanhã, o Físico lamentou não ter ficado no lar, o Escrivão mencionou algo relacionado com o trabalho e o Periglicófilo apareceu quando a viagem parecia arruinada. Enquanto olhavam o cinzento da rua e proferiam facécias, o Patrocinador queimava faixas de vides nos fornos e perguntava aos ciclistas se não queriam tomar alguma coisa. Estes deixaram bem claro que ainda não tinham feito nada para merecer tal mercê. O Patrocinador discordou baseando-se num episódio com trinta anos no qual foi participante. Quando vinha das Cardinas, pela manhã, ainda cedo, encontrava o velho Graça sentado à porta da mercearia. Este, cumprindo os preceitos da educação aldeã, incitava-o:

    – Ó Carlitos, vem tomar um portinho.

    O Patrocinador respondia:

    – Não posso. Ainda não comi.

    E tudo isto não era senão o prólogo de uma airosa réplica:

    – Alguma coisa tem de ir adiante.

    A chuva persistia, alagava as estradas. O Escrivão tentou telefonar ao Paulinho. Eram nove e meia. Usou um número antigo. Do outro lado, veio uma voz ensonada e suplicante:

    – Este número já não é do Paulo…

    O Periglicófilo fez a chamada e ficou a saber que o Rúben se portou bem na corrida do passado domingo. Continua a progredir. Foi vigésimo sexto na perseguição em circuito urbano e um dos dois cadetes da Maia que lograram terminar sem eliminação.

    Quando a chuva abrandou, os viajantes decidiram meter-se ao caminho e ir pelo menos ao canto da Bicuda, subindo por Sepins para justificar a nata. Em Sepins, viram o céu clarear e, num repente, inflectiram para Cantanhede, onde chegaram secos. O Periglicófilo propôs a São Pedro que derramasse as águas que lhe aprouvesse nos quinze minutos seguintes, o que realmente aconteceu, deixando estupefactos os colegas. Fechadas as torneiras do céu, encaminharam-se para casa em pedalada muito vagarosa, como se não houvesse mais chuva para cair. Debateram a administração escolar, a natureza do cérebro, a filosofia do conhecimento e as próximas eleições autárquicas. Já na Curia, com as nuvens carregadas, o Escrivão e o Físico tiveram o desplante de parar para concluir a conversa. E então o apóstolo, defraudado pelo descaso que os ciclistas estavam votando aos seus favores, lançou uma bátega vigorosa que apenas prejudicou o Físico. Imagino-o na ladeira de Anadia, encharcado, ofegante, produzindo vapores de água no calor do esforço e perguntando aos santos porque o abandonaram.

     
    • topedrosa 14:32 on 18/04/2016 Permalink | Responder

      A vontade na manhã de Domingo era de respeitar as obrigações, ou seja fazer parte de mais uma viagem cíclica. Às 9 horas apresentei-me no novo local de encontro. A chamada de piquete falou mais alto e lá tive que ir a Campanhã. Isso de comer francesinhas já não se compadece com o meu estado civil e fiquei-me por tripas, à moda do Porto, claro. Devo dizer que no regresso do Porto, ainda deu para fazer uma saída das 19 às 21. Como a hora estava avançada, não consegui deliciar-me com uma nata na Nova Cidade, apenas realizar um ida e volta até a Pocariça. O dia não foi totalmente perdido.

      • nunorosmaninho 14:40 on 18/04/2016 Permalink | Responder

        Se um ciclista assim emérito vai a Campanhã, vê-se logo que não é por medo da chuva mas por imperativos profissionais. De gastronomia, não sei nada.

    • Graça Matos 16:05 on 18/04/2016 Permalink | Responder

      As três donzelas ficaram por casas, compadecidas com o infortúnio do infeliz ciclista e prosseguiram a temerária viagem em volta dos restos fúnebres do leitão do dia anterior! Bem-haja o patrocinador, cujas mãos sagradas tão bem confeccionam o divino prato bairradino, pois das tripas nem quero ouvir falar!
      Quanto ao S. Pedro, acabou por dar tréguas e ajudou a terminar em bem, um dia que parecia destinado ao azar desportivo.

      • nunorosmaninho 11:19 on 20/04/2016 Permalink | Responder

        Antigamente, ouvia-se muito dizer: É tudo por Deus!

  • nunorosmaninho 11:11 on 14/04/2016 Permalink | Responder  

    A religião na aldeia 

    O ano de 1932, que vê estas coisas passarem-se em Coimbra, foi o princípio, na nobre paróquia de Tamengos, do reinado do padre Manuel de São Marcos, que já várias vezes mencionei e de quem tive o gosto de publicar uma fotografia onde aparece agarrado à bicicleta e com a gola no sítio. Belisário Pimenta conhecia bem a religião na aldeia. Os seus passos faziam-se, porém, em Paz (Mafra) e Miranda do Corvo, para onde foi em Março. Nos anos exaltados da Primeira República houve tiros e zaragatas por conta das manifestações exteriores do culto. Isso aconteceu mesmo nas terras da Bairrada, facto que me abstenho de desenvolver por ter a plena consciência do favor que os leitores fazem em acreditar no que digo. Mas como em tudo é preciso captar a sensibilidade dos tempos e não a nossa, deixei-me encantar pelo que Belisário Pimenta disse quando lhe perguntei o que pensava da restauração da religiosidade aldeã.

    – Em meados de Março estive em Miranda do Corvo e fiquei impressionado com o que vi. Aliás, dei-me ao trabalho de tomar algumas notas.

    E dizendo isto, abriu uma das gavetas da secretária e extraiu um volume manuscrito que foi folheando até encontrar o que procurava. Premiu as folhas para que o volume se mantivesse aberto e leu:

    «No próximo domingo há aqui a festa dos Passos, festa rija que, pela despesa que traz só se realiza de dois em dois anos; anda a vila alvoroçada com a perspectiva da festança; e todas as manhãs se juntam grupos de homens no adro da igreja, esperando o abrir das portas para se confessarem – pois seria inverosímil que o Senhor dos Passos saísse da sua residência lá do alto e desse a honra de descer à vila e encontrasse os pobres mortais com a consciência suja e sem a devida absolvição. Levantam-se altares em certos pontos das ruas para os “passos” do Senhor; fazem-se fornecimentos de comestíveis; lavam-se as casas; fazem-se convites. Há um comboio especial de Coimbra, para os devotos e para os pândegos. Etc., etc. Mistura-se o sagrado com o profano, ganha-se dinheiro e sempre se mantém a fé dos nossos maiores…»

    Como se lembram, estas rememorações da conversa com Belisário Pimenta iam sendo feitas para o Anastácio enquanto caminhávamos pelas ruas da Alta de Coimbra. Por isso, não se devem surpreender com a sua reacção.

    – Muito bem, senhor Escrivão. Não sei se era indispensável ter-se ocupado com esta história, mas reconheço que está a ir depressa. O que falta para chegar às bicicletas?

    – Um episódio apenas: a visão de um carácter íntegro, que até o senhor Vasconcelos deve apreciar.

     
  • nunorosmaninho 10:22 on 13/04/2016 Permalink | Responder  

    A religião volta a adocicar os caracteres melífluos 

    Sei bem quanto este título está revoltando as mentes de alguns leitores. Mas que querem? Estou a seguir as palavras de Belisário Pimenta e ele é terminante neste assunto, para si muito sensível. Logo no início da conversa, estávamos ambos mexendo o café, contou a história do advogado anarquista.

    – O advogado anarquista… Isso é que era um bom título.

    – Não pode ser. Fernando Pessoa já o fez com um banqueiro.

    O advogado em causa chama-se Fernando Lopes. «Em estudante», lembrou Belisário Pimenta, «foi um anarquista; sustentou um jornal anarquista, fez propaganda anarquista; quando se proclamou a República pertenceu à célebre “falange demagógica” que praticou o chamado desacato à sala dos capelos e ao vestiário dos lentes, em Outubro. Depois de formado, casou civilmente com a afilhada do velho democrata Frederico Graça e manteve-se sempre republicano liberal e começou a sua vida de advogado acompanhando os chamados “democráticos” em política e depois da cisão, acompanhou o Álvaro de Castro.

    Por morte do Graça – continuou Belisário Pimenta –, herdou toda a fortuna; hoje é rico não só por isso mas porque ganha o dinheiro que quer na especialidade de Direito comercial em que é distinto. Pois bem. Há uns meses casou religiosamente; baptizou os filhos que estavam somente registados; e na Quinta das Romeiras, do velho Graça e que ele herdou, está restaurando a capela que este transformara, há mais de meio século, em arrecadação ou celeiro.»

    Perguntei ao coronel qual pensava ser o motivo da conversão religiosa.

    «Motivo? Há versões: uns dizem que por causa do ambiente actual, favorável a essas mutações; outros que por causa do casamento da filha com o filho dum brasileiro beato que só deixa casar o pimpolho com gente católica-apostólica… Poderá ainda haver terceira versão. Estas, porém, chegam para avaliar a evolução dum exaltado anarquista.»

    – Será esta história mais uma parábola? – inquiriu o Anastácio.

    Respondi-lhe que não sabia, mas pedia em Deus que o senhor Vasconcelos não visse nenhuma desconformidade no episódio.

    – A evolução de um exaltado anarquista… Também dava título.

    – Não gosto da evolução. E há tautologia na exaltação de um anarquista. Fica como está.

     
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