O Anastácio, que me ia ouvindo narrar os aspectos principais da conversa com Belisário Pimenta, não perdeu de vista a pergunta que tinha feito:
– A fortaleza de Floro Henriques é carácter, teimosia ou impossibilidade de rejeitar quatro anos de exílio? Sabe que nesse tempo não faltam casos de deportação, mesmo em Anadia.
– Em Anadia?
– Se for ao seu dossiê sobre o dr. José Rodrigues, encontra notas de duas entrevistas sobre o assunto.
– Tenho uma fraca lembrança.
– Deixe-me então resumir o caso. – Isto foi o princípio de uma curiosa inversão de processos, em que o Anastácio falou daquilo que, tendo eu escrito, eu próprio devia contar. – Em 13 de Dezembro de 1995, o filho do dr. José Rodrigues comentou as circunstâncias em que o pai, advogado, autor de O Couto de Aguim, tinha sido preso no tempo da Ditadura Militar. E o senhor Escrivão, que deve ter tido esta conversa no café, tomou as seguintes notas: «No momento em que foi preso, o dr. José Rodrigues preparava-se para fazer as provas do concurso nacional para notário. Já no Aljube, obteve autorização para as realizar, o que fez, tendo sido aprovado. No entanto, saído da prisão, receou dificuldades e represálias se se candidatasse a um lugar no funcionalismo público. Por esse motivo, optou pela advocacia em Anadia, onde aliás tinha feito estágio com Virgílio Pereira da Silva.»
– Qual o motivo da prisão?
– Isso agora… O senhor Escrivão é pouco claro, para não dizer que é confuso. Em 17 de Janeiro de 1997, mais de um ano após o diálogo que deu origem a este apontamento, retomou o tema à mesa do Café Anadia e acrescentou os seguintes aspectos, que eu entendo mal e o senhor, pelos vistos, também não sabe esclarecer: «O dr. Vergílio Pereira da Silva foi a Leiria buscar um veículo militarizado (tractor transformado?).»
– Isso é absurdo! Para que queria ele o tractor transformado? O que é um «tractor transformado»?
– O senhor é que escreveu. Deixe-me prosseguir a leitura. «Por causa da polícia, evitou a Estrada Nacional n.º 1 e veio pela Figueira da Foz. No caminho, por troços de estrada macadamizada, a carga voltou-se, tendo recebido a ajuda de populares.»
– Qual carga?
– Sei lá! «Chegou a Anadia com o veículo em cima da camioneta num domingo à tarde, quando, como era habitual, se procedia a uma hasta pública no tribunal. O veículo foi por isso muito notado»
– Estou a ver… O tractor transformado veio numa camioneta. Era ele a carga. Ainda não percebi para que o queria o dr. Virgílio Pereira da Silva. Alguma insurreição…
– As suas notas manuscritas continuam assim: «Não surpreende, por isso, que a polícia tenha tomado conhecimento, se é que não foi a própria PVDE a criar a situação, armando uma cilada com aquele veículo que alegadamente viria já de Lisboa. Para que serviria ele?»
– Passados vinte anos, só sei o que está escrito.
– «O veículo foi depositado na fábrica de cerâmica. No dia seguinte, segunda-feira, o dr. José Rodrigues, então estagiário de Virgílio Pereira da Silva, entabulou conversa casual com Artur Sereno, de Anadia, que lhe perguntou que veículo era aquele. José Rodrigues, conhecedor do facto, informou-o. Preso Artur Sereno pela PVDE, confessou a fonte da informação e José Rodrigues também foi preso.»
– Prossegue. Isto há-de chegar a algum lado.
– «Na iminência de ver o filho deportado para Timor, na leva em que foi o próprio dr. Virgílio, o pai de José Rodrigues procurou auxílio no dr. Delfim de Almeida, de Bolho ou Vilarinho do Bairro. Foi ao Palace Hotel da Curia, onde ele se encontrava a passar as férias de Verão, e pediu-lhe que intercedesse, o que este fez dirigindo-se ao ministro Vicente de Freitas, que era frequentador do Palace. Vicente de Freitas sugeriu que José Rodrigues escrevesse o que realmente acontecera. Com este procedimento, José Rodrigues não foi deportado para Timor, mas acabou por inaugurar o forte de Peniche, onde conheceu Vasco da Gama Fernandes.» Neste ponto – disse-me o Anastácio com um olhar de censura –, o senhor escreveu que o regime de prisão aberta lhe permitia circular pela vila e que antes esteve detido no Aljube. «Esteve preso cerca de um ano. Na altura tinha 22 anos.»
– Mais alguma coisa?
– Parece ter sido Celestino Neto, escrivão no tribunal e director do jornal Independência de Águeda, que lhe sugeriu que concorresse para notário. E foi nessa conjuntura, como vimos, que ele foi preso. José Rodrigues estudou na prisão e apresentou-se a exame acompanhado por um polícia da PVDE. O senhor diz que «passou no exame e confraternizou com o polícia».
– Eu limitei-me a transcrever as palavras do filho do dr. José Rodrigues.
– Mas olhe que isto é estranho. Falta aqui algum contexto ou alguma explicação. Parece um elogio da polícia política! Sobretudo porque a seguir o dr. José Luís Rodrigues lhe disse que o pai combinou fazer saídas ao Estoril, com aquele nefando elemento durante o Verão, facto que acabou por ser superiormente descoberto e proibido. O senhor Escrivão desculpe-me, mas tudo isto é estranho e, em certos aspectos, incompreensível. Devia fazer uma terceira entrevista ao filho do dr. José Rodrigues.
– Talvez! Mas não confundas mais. José Rodrigues lá esteve um ano na prisão. E Virgílio Pereira da Silva, nascido em 1888, rijamente festejado em Julho de 1917 por ter concluído a licenciatura em Direito, não se livrou da deportação em Timor.
– Bem, sendo assim…
– Noutro dossiê tenho uma dezena de folhas sobre Virgílio Pereira da Silva. Por elas verifico que o jornal A ideia Livre, de Anadia, começou o mês de Janeiro de 1932 com uma notícia intitulada «Deportados políticos»: «No dia 10 do corrente sai de Macau o vapor Chinde, no qual regressam à metrópole alguns dos deportados políticos que tinham ido para Timor, entre os quais os nossos conterrâneos srs. Virgílio Pereira da Silva e Artur Sereno. Quem desejar escrever-lhes pode fazê-lo para Lourenço Marques.»
– Enquanto aqui andamos a passear por Coimbra, em Anadia o dr. Virgílio Pereira da Silva tem a vida desorganizada e incerta.
– É o ar do tempo, amigo Anastácio. No dia 22 de Julho, A ideia Livre, que tenta fazer oposição local ao regime, insere a seguinte nota: «O sr. dr. Mário Pais de Sousa, ex-ministro do Interior, converteu em suspensão por dois anos a pena de demissão que havia sido imposta ao nosso estimado amigo sr. dr. Virgílio Pereira da Silva. O nosso maior desejo seria noticiar aos leitores a completa anulação da pena. No entanto, devemos confessar que nos agradou a modificação operada na condenação daquele republicano. E lembramos que a obra de justiça fica imperfeita enquanto não abranger também o sr. Artur Sereno.»
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