Updates from Março, 2021 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 19:07 on 31/03/2021 Permalink | Responder  

    O fim de 1945 

                   A cidade universitária de Coimbra, que hoje se contempla no topo da Alta, a pedir comparação vaidosa com a Sé Nova e o Paço das Escolas, estava, em 1945, em plena construção. O ano começara com o lançamento das Escadas Monumentais e ia agora terminar com a abertura dos alicerces da Faculdade de Letras. Destruído o quarteirão de velhas casas, incluindo a de Eugénio de Castro, que saiu combalido desse desgosto de fim de vida, e quebrado o monumento a Camões, erguido pelos estudantes republicanos em final do século XIX, as obras da Faculdade de Letras foram encetadas em 21 de Dezembro. Haviam de prosseguir até à inauguração, em 1951.

                   Por esses dias, Primo Levi começou a narrativa da sua prisão e envio para o campo de concentração de Auschwitz.

     
    • ruigodinho1962 10:09 on 01/04/2021 Permalink | Responder

      40 anos depois dos factos narrados, andávamos nós a usufruir desses espaços em construção, com particular incidência na Faculdade de Letras, nossa segunda casa durante anos.
      Mas, sem darmos por nada, quase estão a cumprir-se outros 40 anos!!!!!!!!

      • nunorosmaninho 12:00 on 01/04/2021 Permalink | Responder

        O meu avô Maneco dizia que chegou a velho sem dar por isso…

  • ruigodinho1962 10:59 on 29/03/2021 Permalink | Responder  

    Em plano de recuperação 

    Por aqui e por ali, na zona oeste do Concelho de Anadia, 28 de Março de 2021

    Pelo segundo domingo consecutivo, o nosso Enólogo deixou-se arrastar para mais umas pedaladas, que só não ocorreram igualmente na passada 4ª-feira por manifesta incompatibilidade de horários.

    O percurso seria idêntico, não fora este malfadado confinamento e uma brigada da GNR, ao chegar à Quinta do Cedro, que barrava a passagem de todo e qualquer veículo que não apresentasse justificativo válido. E não foi suficientemente válida a alegação de procurar estradas em melhores condições (incluindo os desníveis negativos) para quem não pedalava há dois anos. O que tem toda a lógica…

    Feito um percurso alternativo, via Chipar(es) e Vendas de Samel, todo o restante trajecto foi idêntico. Bem… em Ancas demos uma volta maior, mas com declives menos adversos, como convém.

    Duas curiosidades mais assinalam esta voltinha: o grande número de cíclicos que encontrámos, também eles bordejando o nosso município, e o curioso nome de uma rua em Amoreira da Gândara.

    Liga o Café Amoreirense ao Largo Imaculado Coração de Maria, junto à igreja, e chama-se Rua 24 de Abril.

    Naturalmente que esta designação colocou a pulga atrás da orelha e criou uma certa expectativa nos dois. Deixei esta publicação para hoje, porque decidi (tentar) averiguar porque se coloca a uma rua um nome que nos poderia remeter para épocas de ditadura. Feitas várias tentativas para vários organismos, incluindo a Junta de Freguesia, atendeu algum do Snack-Bar Cruzes, dessa mesma rua. Apesar de ser residente em Amoreira há 30 anos, não fazia ideia da origem do nome da rua. O que me pareceu ser o seu único interlocutor, decerto pessoa mais idosa, apenas se lembra que seja uma qualquer data importante para a aldeia. Fiquei na mesma…

    Carece de mais investigação, pois as variadíssimas páginas na Internet produziram zero.

    Ah! Pois é!… Então e porquê aquele título que escolhi, pergunta o leitor! É fácil: apesar de o Enólogo se lastimar constantemente (lembrando aquela história em que o tomate diz para a tomata: tu matas-me!), algo que é transversal a quase todo o nosso grupo, fizemos mais 4 quilómetros do que no outro Domingo, com mais 60 metros de subida acumulada e em menos 3 minutos!!! Elucidativo!!

     
    • Físico 13:46 on 29/03/2021 Permalink | Responder

      Eu tive mais sorte, como fui mais tarde já não encontrei a brigada da GNR na Quinta do Cedro. Por isso fui até Campanas e segui até à Mamarrosa, daí para Amoreira seguindo para Fogueira, Sangalhos e S. João da Azenha, Avelãs de Cima, Avelãs de Caminho, Arcos e casa. Lá foram 52 km.

  • nunorosmaninho 19:57 on 28/03/2021 Permalink | Responder  

    Eça e a Bairrada 

                   Sem me dar conta, também estou quase a palestrar sobre Eça de Queirós, medindo as ocorrências de ciclismo, e não a presença dos militares na sua obra. Temo, porém, que isso não chegue a ocupar uma página. Ainda agora acabei de escutar a leitura integral de Os Maias, e nem uma bicicleta lá encontrei. Mesmo outros desportos são escassos, apesar da memorável corrida de cavalos, que rendeu uma chapelada de dinheiro a Carlos da Maia, e os jogos de cartas nos serões do Ramalhete. Desportistas, excluindo os que montavam os cavalos de corrida, só o lamentável Dâmaso Salcede, demasiado gordo e preguiçoso para a esgrima, que Carlos em vão lhe quis ensinar, mas que aparece como sportman nos jornais que noticiam os seus passeios e regressos a Lisboa. Quando Carlos da Maia embarcou numa longa viagem pelo mundo, com João da Ega, para escapar à tragédia em que caíra, a Gazeta Ilustrada também lhe chamou «distinto e brilhante sportman». Em Eça de Queirós, não há pormenores casuais. O que significa este uso, que devia ser elogioso?

                   Belisário Pimenta é que sabia disto tudo, porque leu Eça de Queirós com afinco. Começou em 1898 com O Crime do Padre Amaro, A Relíquia e Os Maias, em 1899com O Primo Basílio e O Mistério da Estrada de Sintra e, em 1900, com O Mandarim. Em 1902, releu A Relíquia. Em 1903, dedicou-se a Fradique Mendes e à releitura do Primo Basílio. Em 1904, chegou a A Cidade e as Serras. Em 1905, andou pel’A Ilustre Casa de Ramires. Em 1906, releu o Padre Amaro e A Cidade e as Serras e deu-se ao prazer das Cartas de Inglaterra e dos Ecos de Paris. Em 1908, voltou a Os Maias. Em 1909, apreciou as Cartas Familiares e Bilhetes de Paris. Seguiu-se um interregno. Belisário Pimenta entrou na política da Primeira República. Apenas lhe sobrou tempo para a terceira leitura de O Crime do Padre Amaro, em 1917, a terceira de Os Maias e a primeira das Prosas Bárbaras e das Últimas Páginas, em 1922, a quarta de A Relíquia, em 1923, a segunda de O Mandarim em 1924, a terceira de O Primo Basílio, em 1925, e a primeira de O Egipto, em 1926. Em 1929, iniciou-se nas Cartas Inéditas de Fradique Mendes. Belisário Pimenta entrou nos anos trinta a reler a epistolografia e as crónicas: Cartas de Inglaterra (1932), Cartas Familiares e Bilhetes de Paris (1932), Ecos de Paris (1932), Notas Contemporâneas (1934) e Correspondência (1936). Neste último ano, leu ainda Uma Campanha Alegre. Depois, transitou para a correspondência ficcional de Fradique Mendes, em 1936, e aplicou parte do ano de 1937 na quarta viagem (e última) pel’O Crime do Padre Amaro, Os Maias e O Mandarim. Em 1940, fez a segunda leitura das Últimas Farpas, dos Contos e de A Cidade e as Serras, a terceira da Correspondência de Fradique Mendes e de A Ilustre Casa de Ramires, a quarta de O Primo Basílio e a quinta de A Relíquia. Em 1941, iniciou-se em Alves & Companhia, A Capital, Cartas, Cartas de Londres, Conde de Abranhos e Novas Cartas Inéditas para Ramalho Ortigão. Neste ano, ainda voltou pela segunda vez aos Inéditos de Fradique Mendes, às Prosas Bárbaras e a O Mistério da Estrada de Sintra, pela terceira (e última) às Cartas de Inglaterra, às Cartas Familiares e Bilhetes de Paris, aos Ecos de Paris e às Notas Contemporâneas. Em 1942, Belisário Pimenta mantinha um livro de Eça de Queirós por ler, livro dolorosa para o leitor anticlerical que continuava a ser: Dicionário dos Milagres. Leu-o, talvez a contragosto. Em 1945, deu o último passeio pela Correspondência de Fradique Mendes. Seguem-se nove anos de interregno. Fez a quinta e última visita a A Cidade e as Serras em 1954, a terceira às Cartas Inéditas de Fradique Mendes em 1955, a quarta (e última) à Ilustre Casa de Ramires em 1957 e a sexta (e última) à Relíquia também em 1957. Belisário Pimenta leu Eça de Queirós pela última vez em 1958: Cartas Inéditas de Fradique Mendes. Depois, abandonou o registo das leituras. Vivendo até 1969, há-de ter continuado a folhear os livros de uma das suas prateleiras favoritas.

                   Ele, que conhecia tão bem Eça de Queirós como as invasões napoleónicas, se me pudesse seguir neste apontamento, diria, condoído, que não valia a pena procurar bicicletas onde não as há. No entanto, querendo ser amável, talvez me mandasse para o capítulo XVI d’Os Maias. Há lá alguma bicicleta a passar pelos Olivais ou na Rua de S. Francisco? Não, de modo nenhum. Há apenas uma curiosidade bairradina.

                   O senhor Guimarães, tio do Dâmaso, pediu explicações a João da Ega por causa de um episódio de cobardia do sobrinho. De repente, escuto: «os Guimarães da Bairrada eram de sangue azul». Isto disse o senhor Guimarães, aliás democrata, honesto, para distinguir a mãe de Dâmaso do pai, um agiota, no sarau em que Cruges tocou a sonata Patética, de Beethoven, e o Rufino discursou melifluamente sobre a caridade régia, quando o Prata se preparava para dissertar sobre a agricultura no Minho, sem deixar de citar Proudhon.

                   Agora, bicicletas… E quem me garante que a Bairrada, enobrecida pela pena de Eça de Queirós, é esta onde poisam os ciclistas dominicais das viagens cíclicas e não aquela povoação por onde passámos quando fomos de bicicleta a Fátima?

     
    • ruigodinho1962 23:17 on 28/03/2021 Permalink | Responder

      Não sei se tal será fácil de comprovar, mas curiosamente existe uma Fonte (chamada) de Guimarães em Sá, Sangalhos. Está publicado, com várias fotografias, na página do Facebook Bairrada Lovers.
      Localiza-se praticamente a seguir à Estalagem de Sangalhos e foi recentemente alvo de uma boa intervenção.
      Aquando das minhas pesquisas sobre Sangalhos para a “Aqua Nativa” esse espaço estava totalmente abandonado. Tornou-se um espaço bem agradável!

  • nunorosmaninho 12:50 on 24/03/2021 Permalink | Responder  

    Adenda ao regresso do Enólogo que já foi Lenhador 

                A minha obstinação de anotador obriga-me a registar a passagem do tempo nas viagens cíclicas. Neste domingo, aliás merecedor de outro requebro poético primaveril, pensava pedir o vosso aplauso para o facto de ter adquirido cinco câmaras-de-ar e conseguido ir de Ílhavo à Vagueira e à Costa Nova sem furar a roda. Tinha bem presente que o Físico daria conta, no Strava, de mais uma volta de cinquenta quilómetros por Sangalhos, Vilarinho e São Lourenço do Bairro. Não esperava o regresso do Enólogo. Ao ver a fotografia, pensei que estava a ver mal, o que é sempre verdade, mas não ao ponto de me enganar na identidade do retratado. Pergunta o Periglicófilo há quantos anos ele se ausentara. O registo das natas, mantido pelo Informático Ferroviário, diz que o Enólogo já não pedalava na nossa companhia há dois anos, desde 24 de Março de 2019. No ano anterior, deu cinco voltas em Fevereiro, Abril e Setembro. Quem sabe o que pedalará connosco a partir de agora?

     
    • ruigodinho1962 13:55 on 24/03/2021 Permalink | Responder

      24 de Março de 2019??? Então é motivo para celebração!!! Não completou dois anos de ausência, o que se regista hoje mesmo. Infelizmente, hoje não podemos pedalar juntos novamente, por incompatibilidade de horário. Mas apenas por isso!
      Estão prometidas outras voltas, se não em grupo, pelo menos em pares.

  • ruigodinho1962 12:24 on 22/03/2021 Permalink | Responder  

    Dois retornados 

    Desenganem-se aqueles que usualmente olham superficialmente para tudo o que os rodeiam, não vendo rigorosamente nada!
    Não! Este título em nada nos transporta para o período após a revolução de 25 de Abril de 1974. Aquele período bem quente da nossa História, tão quente que até contou com um “Verão Quente”.
    No âmbito dessa época de convulsões políticas e militares, centenas de milhar de Portugueses tiveram que se refugiar no nosso país, fugidos das perseguições que lhes eram movidas nos territórios outrora por nós colonizados.
    Foram apelidados de “Retornados”. Todos, por grosso. Muitos não o foram, porque haviam nascido em território africano, logo deveriam ser designados de “Refugiados”. Os Retornados eram “apenas” os que tiveram que regressar à metrópole.
    No dia de hoje, esse epíteto nada tem a ver com processos de descolonização, mas com um aumento de pressão em quatro rodas, por volta aí dos sete bares. Foi a condição essencial para dois cíclicos deste grupo retornarem às lides do pedal.
    Um, este escrivão de vez em quando substituto (atenção que deverá estar a chegar um texto do verdadeiro Escrivão!), que voltou a pedalar quase dois meses desde a última voltinha.
    O outro voltou ao fim de… Sei lá!!!!!!!….. Quantos anos, Lenhador?
    Pois, é verdade!!! A aquisição de algumas garrafas de néctar dos deuses (diziam os antigos Gregos) resultou nesta evento festivo, com promessa de reincidências em futuro próximo.
    A volta teve início no Stand de Tamengos, nomeadamente nas boxes de reabastecimento, com um café bem saboroso. Continuou por um percurso de quase 40 km, por Bolho, Campanas, Samel, Amoreira da Gândara, Fogueira, Ancas e Mogofores. Quase todo com pedalada de baixa cadência.
    Ou, em alternativa, de muito baixa cadência, porque o mais importante era voltarmos à estrada. E falarmos de tudo e mais alguma coisa, algumas vezes aflorando temáticas próximas da arte comum no Ensino, mas evitando-as de tácito acordo.
    No fundo, o primeiro de muitos dias a dar ao crenco.
    Registo para uma foto ilustrativa do brinde cafeínico e de uma obra de arte, numa parede à saída de Ancas.

     
  • nunorosmaninho 19:00 on 20/03/2021 Permalink | Responder  

    Uma bicicleta, segundo Eça de Queirós 

                   Que me lembre, a velocipedia só apareceu mais uma vez n’A Cidade e as Serras, no passeio final por Paris, antes da partida para Tormes. «Vamos ao Bosque, por despedida?» –  perguntou Jacinto. E foram, no conforto embalador de uma vitória, que fez Zé Fernandes ver tudo numa plasticidade de sonolento. Por lá andavam a bela Madame de Trèves, «a barba talmúdica» de Efraim e, entre outros amigos, Todelle. Escreve Zé Fernandes: «Todelle relampejou rente de nós sobre uma grande bicicleta.»             Jacinto e Zé Fernandes não falam de bicicletas nas aldeias do Douro. No século XIX, não há bicicletas onde prolifera a miséria. Ou há em pequeno número. Nas grandes cidades é que os velocípedes eram muitos. Tenho visto filmes muito antigos, ainda Eça de Queirós vivia, em que os ciclistas circulam pelas ruas de Paris, em frente da catedral. No filme que antecede, em poucos dias, o grande terramoto de S. Francisco, vemo-los a disputarem o caos do trânsito, de chapéu, com as abas do casaco a esvoaçarem. É um mundo que ainda para aqui trasladarei.

     
  • nunorosmaninho 11:29 on 17/03/2021 Permalink | Responder  

    A madame no velocípede do padre Ernesto 

                   Antes de Jacinto descobrir a beleza incomparável do Douro e a profunda miséria das suas gentes, vivia, abúlico e cansado, na Paris de fim de século, numa casa recoberta de livros, de luxos e da mais avançada tecnologia do seu tempo, incluindo uma antecipação do serviço de notícias e do audiolivro. À sua moradia, ia a melhor sociedade, incluindo um grão-duque, que lhe enviou um peixe, pescado na Dalmácia, para uma ceia ornamentada pela elegância das senhoras, pelo espírito de cavalheiros das artes e pelo dinamismo de homens de negócios. Passou-se isso a meio do capítulo quarto, quando apareceu, esbaforido, segurando um lenço perfumado, a personagem chamada António de Todelle, que perguntou:

                   «– Já veio?… Já cá está o grão-duque?

                   Não, Sua Alteza ainda não chegara. E Madame de Todelle?

                   – Não pôde… No sofá… Esfolou uma perna.

                   – Oh!

                   – Quase nada… Caiu do velocípede…

                   Jacinto, logo interessado:

                   – Ah, Madame de Todelle anda já de velocípede?

                   – Aprende. Nem tem velocípede!… Agora, na Quaresma, é que se aplicou mais, no velocípede do padre Ernesto, do cura de S. José! Mas ontem, no bosque, zás, terra… Perna esfolada. Aqui.

                   E na sua própria coxa, com a unha, vivamente, desenhou o esfolão. Efraim, brutal e sério, murmurou: – Diabo! É no melhor sítio! – Mas Todelle nem o escutara, correndo para o director do Boulevard, que se avançava, lento e barrigudo, com o seu monóculo negro semelhante a um pacho.»

                   Vamos à hermenêutica. Então, a madame anda, pelo bosque, a aprender a arte dos velocípedes com um padre? E com quem mais? Ao cair, quem a ajudou a levantar-se? Estando ferida, foi conduzida ao colo para uma carruagem? Afagada, talvez, por conta da dor que sentia? O que pensa o ditador destas liberalidades desportivas? Não haverá mais perigo, para o seu circunspecto regime, numa bicicleta a toda a velocidade, montada por uma mulher, que assim acelera o seu desejo de independência, do que num militar bonzo, em representação de um exército fraco?

                   – Diga lá a esse escrivão que já vem tarde.

     
  • nunorosmaninho 20:01 on 15/03/2021 Permalink | Responder  

    A macieira partida – Sangalhos e Vilarinho, 14 de Março de 2021 

                   Vivia em Portugal, no século XIX, um pintor chamado José Júlio de Sousa Pinto. Em 1883, pintou um enternecedor tema campestre, que fez seguir para o Salon de Paris, no ano seguinte, com o título Après l’Ouragan. Uma pobre mulher, já idosa, de saia comprida e avental, observa com tristeza os efeitos da tempestade numa árvore quebrada, que dá sentido ao título em português: Macieira Partida. Vela-a como num funeral, de pé, imóvel, consternada. Deve ter cruzado os braços, porque o esquerdo segue a linha da cintura, mas, num momento de fraqueza, deixou pender a cabeça e apoiou-a na mão direita. Assim ficou, sabe-se lá quanto tempo. Assim fiquei eu, neste domingo, de manhã, a olhar para a minha bicicleta.

                   Tinha visto a alegria do sol. A ramagem das árvores mal bulia. Tomara sem pressa o pequeno-almoço, pusera dinheiro, cartões e fruta no bornal, aferrara o capacete e calçara as luvas. A luz entrava pelo portão da garagem. Limpara a corrente e oleara-a. Tirara a bicicleta do suporte e encostara-a à parede. A roda de trás ainda tinha 6 bares, mas eu acrescentei um. A da frente estava a zero. Como zero? Fiquei dois minutos, incrédulo e exasperado, diante da minha macieira partida. Depois, retirei a roda e notei como o ar assobiava por um buraco da câmara.

                   Tinha uma câmara nova e procedi à substituição. Dei-lhe outros sete bares. para que não rompesse num buraco. Montei a roda na forqueta e verifiquei os travões e o sensor do hodómetro. Tudo certo. Fui lavar as mãos. Pequei na bicicleta. A roda estava outra vez vazia.             O Físico teve mais sorte. Foi de Anadia a Sangalhos e Vilarinho, andou 53,51 quilómetros e subiu 394 metros.

     
  • nunorosmaninho 18:24 on 13/03/2021 Permalink | Responder  

    Digam lá ao senhor coronel 

                   Em final de 1945, na grande agitação oposicionista ao Estado Novo, as ideias de Eça de Queirós sobre os militares podiam tornar-se subversivas. Salazar talvez preferisse outras hermenêuticas queirosianas. Não seria caso para dar ordem de prisão a Belisário Pimenta, nem talvez para o silenciar. O ditador, ardiloso e sibilino, encontrava, para estes casos, outras maneiras de mostrar quem manda. Imagino-o, ficcionalmente, a enviar um recado nos seguintes termos:

                   – Digam lá ao senhor coronel que eu também gosto de Eça de Queirós, não o das rapaziadas revolucionárias e imorais dos primeiros romances, mas o do patriotismo e recato dos ´últimos. Digam-lhe para estudar o acrisolado amor pátrio n’A Cidade e as Serras.

                   Conjecturo a resposta de um ingénuo:

                   – Nesse romance, não há militares.

                   – Por isso mesmo – diria o ditador, com olhar frio. – Por isso mesmo…

                   O interlocutor cala-se, por não achar o que dizer. E o padreco de S. Bento, satisfeito, daria a cutilada final:

                   – Ele que estude a presença das bicicletas…

                   O coronel Belisário Pimenta prosseguiria a cruzada anti-salazarista no resguardo do diário e, não querendo saber de ciclismo, deixaria que outro cumprisse o desígnio oportunista do ditador. Esse outro sou eu, e vou mostrar a ocorrência de uma queda de bicicleta em A Cidade e as Serras.

     
  • nunorosmaninho 19:34 on 11/03/2021 Permalink | Responder  

    Uma bestinha regular 

                   Fiquei a pensar. Há uns anos, Belisário Pimenta assinalou com pena o fecho do café Leão d’Ouro, em Lisboa. E em Coimbra não havia de frequentar um café para encontrar os amigos? Talvez fosse à Brasileira ou a Santa Cruz, mesmo estando a preparar uma conferência, porque era um homem organizado e não havia de deixar o trabalho para os últimos dias.

                   Em 14 de Dezembro de 1945, palestrou, finalmente, sobre a presença dos militares na obra de Eça de Queirós. A entidade organizadora, O Instituto, era antiga, venerável, universitária, mas os capelos não compareceram e os militares também não. Belisário Pimenta teve a escutá-lo, escreveu ele no diário, «os amigos e certo número de comerciantes, estudantes e operários levados, decerto, por simples curiosidade». Ao contrário do habitual, faltaram as autoridades civis e eclesiásticas. Um general fez-se representar. Os jornais inseriram uma nota que alguém lhes fez o favor de enviar. «A eterna comédia!…»             Passaram dois dias, e veio um general pedir-lhe uma cópia da conferência. Belisário Pimenta estranhou. Sendo aquela excelência destituída de interesses literários e, pessoalmente, uma «bestinha regular», só podia agir por censura ou perseguição. O seu ajudante, presente na conferência, ter-lhe-á dito que Belisário Pimenta deu uma má imagem do exército ou quis criticar o regime salazarista? Pretende o general apossar-se do manuscrito? E sendo Belisário Pimenta um coronel, deve encarar o pedido como uma ordem? Foi nisto que meditou.

     
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