Sem me dar conta, também estou quase a palestrar sobre Eça de Queirós, medindo as ocorrências de ciclismo, e não a presença dos militares na sua obra. Temo, porém, que isso não chegue a ocupar uma página. Ainda agora acabei de escutar a leitura integral de Os Maias, e nem uma bicicleta lá encontrei. Mesmo outros desportos são escassos, apesar da memorável corrida de cavalos, que rendeu uma chapelada de dinheiro a Carlos da Maia, e os jogos de cartas nos serões do Ramalhete. Desportistas, excluindo os que montavam os cavalos de corrida, só o lamentável Dâmaso Salcede, demasiado gordo e preguiçoso para a esgrima, que Carlos em vão lhe quis ensinar, mas que aparece como sportman nos jornais que noticiam os seus passeios e regressos a Lisboa. Quando Carlos da Maia embarcou numa longa viagem pelo mundo, com João da Ega, para escapar à tragédia em que caíra, a Gazeta Ilustrada também lhe chamou «distinto e brilhante sportman». Em Eça de Queirós, não há pormenores casuais. O que significa este uso, que devia ser elogioso?
Belisário Pimenta é que sabia disto tudo, porque leu Eça de Queirós com afinco. Começou em 1898 com O Crime do Padre Amaro, A Relíquia e Os Maias, em 1899com O Primo Basílio e O Mistério da Estrada de Sintra e, em 1900, com O Mandarim. Em 1902, releu A Relíquia. Em 1903, dedicou-se a Fradique Mendes e à releitura do Primo Basílio. Em 1904, chegou a A Cidade e as Serras. Em 1905, andou pel’A Ilustre Casa de Ramires. Em 1906, releu o Padre Amaro e A Cidade e as Serras e deu-se ao prazer das Cartas de Inglaterra e dos Ecos de Paris. Em 1908, voltou a Os Maias. Em 1909, apreciou as Cartas Familiares e Bilhetes de Paris. Seguiu-se um interregno. Belisário Pimenta entrou na política da Primeira República. Apenas lhe sobrou tempo para a terceira leitura de O Crime do Padre Amaro, em 1917, a terceira de Os Maias e a primeira das Prosas Bárbaras e das Últimas Páginas, em 1922, a quarta de A Relíquia, em 1923, a segunda de O Mandarim em 1924, a terceira de O Primo Basílio, em 1925, e a primeira de O Egipto, em 1926. Em 1929, iniciou-se nas Cartas Inéditas de Fradique Mendes. Belisário Pimenta entrou nos anos trinta a reler a epistolografia e as crónicas: Cartas de Inglaterra (1932), Cartas Familiares e Bilhetes de Paris (1932), Ecos de Paris (1932), Notas Contemporâneas (1934) e Correspondência (1936). Neste último ano, leu ainda Uma Campanha Alegre. Depois, transitou para a correspondência ficcional de Fradique Mendes, em 1936, e aplicou parte do ano de 1937 na quarta viagem (e última) pel’O Crime do Padre Amaro, Os Maias e O Mandarim. Em 1940, fez a segunda leitura das Últimas Farpas, dos Contos e de A Cidade e as Serras, a terceira da Correspondência de Fradique Mendes e de A Ilustre Casa de Ramires, a quarta de O Primo Basílio e a quinta de A Relíquia. Em 1941, iniciou-se em Alves & Companhia, A Capital, Cartas, Cartas de Londres, Conde de Abranhos e Novas Cartas Inéditas para Ramalho Ortigão. Neste ano, ainda voltou pela segunda vez aos Inéditos de Fradique Mendes, às Prosas Bárbaras e a O Mistério da Estrada de Sintra, pela terceira (e última) às Cartas de Inglaterra, às Cartas Familiares e Bilhetes de Paris, aos Ecos de Paris e às Notas Contemporâneas. Em 1942, Belisário Pimenta mantinha um livro de Eça de Queirós por ler, livro dolorosa para o leitor anticlerical que continuava a ser: Dicionário dos Milagres. Leu-o, talvez a contragosto. Em 1945, deu o último passeio pela Correspondência de Fradique Mendes. Seguem-se nove anos de interregno. Fez a quinta e última visita a A Cidade e as Serras em 1954, a terceira às Cartas Inéditas de Fradique Mendes em 1955, a quarta (e última) à Ilustre Casa de Ramires em 1957 e a sexta (e última) à Relíquia também em 1957. Belisário Pimenta leu Eça de Queirós pela última vez em 1958: Cartas Inéditas de Fradique Mendes. Depois, abandonou o registo das leituras. Vivendo até 1969, há-de ter continuado a folhear os livros de uma das suas prateleiras favoritas.
Ele, que conhecia tão bem Eça de Queirós como as invasões napoleónicas, se me pudesse seguir neste apontamento, diria, condoído, que não valia a pena procurar bicicletas onde não as há. No entanto, querendo ser amável, talvez me mandasse para o capítulo XVI d’Os Maias. Há lá alguma bicicleta a passar pelos Olivais ou na Rua de S. Francisco? Não, de modo nenhum. Há apenas uma curiosidade bairradina.
O senhor Guimarães, tio do Dâmaso, pediu explicações a João da Ega por causa de um episódio de cobardia do sobrinho. De repente, escuto: «os Guimarães da Bairrada eram de sangue azul». Isto disse o senhor Guimarães, aliás democrata, honesto, para distinguir a mãe de Dâmaso do pai, um agiota, no sarau em que Cruges tocou a sonata Patética, de Beethoven, e o Rufino discursou melifluamente sobre a caridade régia, quando o Prata se preparava para dissertar sobre a agricultura no Minho, sem deixar de citar Proudhon.
Agora, bicicletas… E quem me garante que a Bairrada, enobrecida pela pena de Eça de Queirós, é esta onde poisam os ciclistas dominicais das viagens cíclicas e não aquela povoação por onde passámos quando fomos de bicicleta a Fátima?
ruigodinho1962 10:09 on 01/04/2021 Permalink |
40 anos depois dos factos narrados, andávamos nós a usufruir desses espaços em construção, com particular incidência na Faculdade de Letras, nossa segunda casa durante anos.
Mas, sem darmos por nada, quase estão a cumprir-se outros 40 anos!!!!!!!!
nunorosmaninho 12:00 on 01/04/2021 Permalink |
O meu avô Maneco dizia que chegou a velho sem dar por isso…