Updates from Agosto, 2018 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 20:00 on 31/08/2018 Permalink | Responder  

    Belisário Pimenta não estava em Paz 

    Tentei sugerir ao senhor Vasconcelos que há na preguiça agitada uma energia admirável e digna, que frutifica nas relações pessoais e em quotidianos activos. O que não dá é resultados tangíveis. Mas cada um age de acordo com a natureza dos seus fins.

    O senhor Vasconcelos disse basta! com um gesto e mudou de assunto:

    – Ouvi que foi a Paz visitar Belisário Pimenta. Ele estava?

    O Anastácio começou a responder por mim:

    – Fomos daqui a Mafra e não o encontrámos.

    – Dizem-me que tem uma bela quinta.

    Apressei-me a concordar em parte. Uma casa tranquila numa eminência de onde se observa o convento joanino, um hectare de terreno murado, uma grande figueira e outras árvores de fruta, uma horta, mas sem a dimensão e o aperfeiçoamento da Quinta do Cabo. Vê-se que é a residência de um homem de letras desligado das actividades económicas, enquanto a sua, disse eu ao senhor Vasconcelos, é um primor de organização agrícola. O senhor Vasconcelos, que me ouvia atentamente, contrapôs um elogio de Belisário Pimenta:

    – O coronel é um homem sério, um trabalhador honesto, uma consciência limpa.

    – Ainda demos a volta à propriedade, a espreitar pelos portões, puxámos mais do que uma vez o fio da sineta mas ninguém atendeu. Uma vizinha supô-lo em Coimbra. Sabia que a mulher de Belisário Pimenta é afilhada da rainha D. Amélia? E logo havia de casar com um republicano anticlerical… Não sei se era por ser Agosto: a quinta pareceu-me silenciosa e seca.

    O senhor Vasconcelos retorquiu nestes termos:

    – Saiba V.ª Ex.cia que, como dizia o mal conhecido Alberto Vieira Braga num artigo sobre rega, «a água é o sangue da terra e a perene surdina do trabalho rústico». Onde ela falta ou escasseia, o mundo morre.

    (Fotografia de Elisa Tavares.)

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  • nunorosmaninho 19:42 on 20/08/2018 Permalink | Responder  

    Preguiça agitada 

    As sementes encontravam-se arrumadas numa caixa de cartão. O senhor Vasconcelos abriu-a e passou o polegar pelos pacotinhos espalmados. «Está cá tudo», disse ele. «Este calor é que não deixa semear nada.» O Anastácio contemporizou: «Deixe passar estes dias. Com a água que esta quinta tem, não há semente que não cresça.» O senhor Vasconcelos assentiu e voltou-se de novo para mim.

    – Quer então dizer que tem subido o Buçaco…

    Isto não era verdade. Depois das sucessivas voltas pela serra da Estrela, a bicicleta ficou pendurada na garagem, absolutamente imóvel.

    – Mas os seus amigos têm andado…

    Reconheci que sim e percebi logo de onde viria o ataque.

    – O seu esforço vai todo para os grandes feitos. É curioso…

    Argumentei com a falta de tempo.

    – Nas férias? Parece-me apenas preguiça, aquilo que o seu amado Séneca chama «preguiça agitada».

    Chegou-se à frente e debaixo do livro de Aquilino Ribeiro retirou um volume intitulado Da Tranquilidade da Alma.

    – Ora ouça. Já lhe disse que detesto a temperança dos estóicos, mas gosto de os ler para ter com que me irritar. «É preciso privar-se da agitação desregrada, à qual se entrega a maioria dos homens, que vemos precipitarem-se alternativamente nas casas particulares, nos teatros e nos lugares públicos: sua mania de se intrometer nos negócios dos outros lhes dá um ar de grande actividade.» O seu Séneca aqui tem razão. «Pergunta a algum deles, quando sai de casa: “Aonde vais? Qual é teu destino?” Ele responderá: “Por Hércules! Não sei nada, mas eu verei gente e encontrarei qualquer coisa para fazer”. Eles vagam assim ao acaso, mendigando ocupações; e que fazem? Não o que resolveram fazer, mas o que a sorte dos encontros lhes oferecer. Suas saídas absurdas e inúteis lembram as idas e vindas das formigas ao longo das árvores, quando elas sobem até ao alto do tronco e tornam a descer até baixo, para nada. Quantas pessoas levam uma existência semelhante, que se chamaria muito justamente preguiça agitada.»

    Fechou o livro, não direi com estrépito mas firmeza, e olhou-me como se tivesse acabado de realizar uma demonstração:

    – O Buçaco sobe-se e desce-se em duas horas.

     
    • António Augusto 17:36 on 24/08/2018 Permalink | Responder

      Muito boa esta da ”perguiça agitada”….dá para umas boas meditações sobre os alvos na vida.
      Os comerciantes promovem-na e até nos descapitalizam a começar com os modelos revolucionários das bicicletas.
      Logo me vêm à lembrança o Ti Maneco na sua YE-YE com travões sólidos e à prova dessa preguiça….

      • nunorosmaninho 20:02 on 02/09/2018 Permalink | Responder

        Muito obrigado pelo seu comentário. Abraço!

  • nunorosmaninho 18:46 on 11/08/2018 Permalink | Responder  

    Retiro de ricos e felizardos 

    A brusquidão do gesto surpreendeu-me. Nada naquele homem parece previsível. Abriu o livro nas primeiras páginas, fixou-o para ler, mas o que se ouviu foi uma admoestação.

    – Falta profundidade ao seu blogue. Tanto tempo a contar as subidas ao Buçaco e nunca disse o que ele era. Muito menos escreveu sobre o que representa.

    Arguí que o blogue não tinha importância, coisa que o deixou indiferente.

    – Falta-lhe profundidade. Já pensou que os leitores de longe andam há anos a perguntar o que é o Buçaco? Assim mais ou menos como o menino Aquilino Ribeiro à Custódia.

    Não percebi, e o senhor Vasconcelos notou-o com satisfação.

    – Claro! Nunca leu os Cinco Réis de Gente… – Voltou a olhar o livro que permanecia aberto na sua mão esquerda. – «Ó Custódia, dize […], já me esqueci o que é o Buçaco…?» E a Custódia, posta naquelas terras do demo, onde acaba o distrito de Viseu e começa o Douro, deu-lhe uma resposta curiosa, que vai gostar de ouvir. «O Buçaco é um retiro de ricos e felizardos. Há lá muitas árvores, muitas árvores, e tão antigas que as plantaram ainda os Afonsinhos.» – Ergueu os olhos para mim. – O que lhe parece?

    Não me parecia nada. A definição era bizarra e incompreensível. Mas como o senhor Vasconcelos esperava uma resposta, dei-a:

    – Falta dizer que há duas estradas inclinadas: uma vai pela mata, a pique, feita de seixos que entaramelam o andar das bicicletas; a outra circunda a encosta e, no topo, conduz-nos suavemente ao miradouro do qual se vê a Bairrada toda e, dizem alguns, a Gândara e até o mar.

    O senhor Vasconcelos franziu a boca, que para ele equivalia a concordar, e acrescentou:

    – E o hotel, que andava em obras quando Aquilino Ribeiro era menino. Deve ser por isso que a Custódia diz que o Buçaco é um retiro de gente rica. E as sementes, estão aí todas?

     
  • nunorosmaninho 15:10 on 08/08/2018 Permalink | Responder  

    Não foi preciso tocar a sineta 

    A quinta do senhor Vasconcelos arma-se na estrada para Tamengos. Rodeia-se de muros e abre-se num vasto portão de ferro forjado, tapado por baixo para impedir a entrada dos cães, rendilhado por cima para que os passeantes admirem a álea coberta de roseiras. No dia em que calhou levar-lhe as sementes, vindas do Porto pelo caminho-de-ferro, o calor encerrava as pessoas na hora da sesta e deixava os campos entregues à bicharada. Não foi preciso tocar a sineta porque o vimos aproximar-se dos lados do cruzeiro. Vinha numa bicicleta maior do que competia à sua pequena estatura, a testa perlada de suor que ele parecia ignorar. Levantou a aldraba e fez-nos entrar, seguindo à nossa direita com a bicicleta pela mão.

    Assim que nos sentámos na varanda alpendrada, serviu-nos a limonada que foi buscar à cozinha e perguntou-me:

    – Acabou-se a serra da Estrela por este ano?

    Não percebi se era delicadeza ou vontade de zombar. Na dúvida, esclareci que a partir de agora os grandes feitos seriam ainda mais pequenos, não passando talvez do Buçaco. E ele, rápido, chegou-se à frente e abriu um dos livros postos na mesinha.

     
  • nunorosmaninho 16:53 on 07/08/2018 Permalink | Responder  

    Para quem são as sementes? 

    – Viemos comprar sementes?

    – Comprar, não – respondeu o Anastácio. – Estão pagas. Viemos buscá-las.

    Já descíamos as escadas do armazém. A carrinha, ajoujada pelos sacos de adubo, desaparecera. O menino devia ir agarrado aos botões do tablier, inclinando-se nas curvas para imaginar que conduzia.

    – O que vais semear?

    – Eu nada. O senhor Vasconcelos é que não quer nenhum recanto da quinta sem plantio.

    – As sementes são para ele?

    – Pediu-me para lhas levar. Não se importa, pois não?

    – Quando é que vamos às corridas de 1938?

    O Anastácio poisou a caixinha de cartão no banco traseiro e fez um gesto vago.

    – Deixe lá isso. Tem tempo. As corridas são poucas e não se lhes consegue chegar.

    E foi assim que, depois de uma disputa epistolográfica sobre a vaidade dos ciclistas, me vi a caminho da Quinta do Cabo, onde o senhor Vasconcelos exerce a vida de proprietário rural quando não está a palestrar com os amigos no Porto.

     
  • nunorosmaninho 12:07 on 06/08/2018 Permalink | Responder  

    Adubo e sementes 

    O leitor já não se lembra que íamos de carro com o Anastácio, passámos pela casa da Rosaira e parámos no armazém da CP, em Mogofores, enquanto a campainha repicava para dar passagem ao comboio. A carrinha de caixa aberta que seguira à nossa frente parou no mesmo sítio e dela saiu um homem baixo, que mancava, e um menino de seis ou sete anos, entusiasmado com a ideia de já saber o trajecto de cor. Isso parecia-lhe uma coisa importante porque viera concentrado a conduzir em dois botões do tablier e não precisara de ninguém para ali chegar.

    O pai subiu os degraus que conduziam ao escritório e disse ao que vinha: não sei quantos sacos de adubo de cinquenta e cem quilos, ferragens embaladas em papelão atado com cordões em cruz, vassouras num molho e enxofre molhável para as vinhas. Rescendia ao líquido acre e escuro que protegia as paredes de madeira e as sulipas. Dois empregados emergiram do fundo do armazém e começaram a carregar os sacos de adubo. Depositavam-nos no carrinho de duas rodas e deslizavam-no até à larga porta que se abria a cerca de um metro de altura. Deste modo, bastavam movimentos rápidos para os dispor na carrinha. Os sacos de cinquenta quilos eram cingidos à barriga, os de cem quilos puxados pelas orelhas pelos dois homens, que num balanço os punham onde queriam. «Cuidado com as molas», dizia o pai da criança, a pensar que o peso brusco podia partir os amortecedores.

    – E o senhor, o que vai desejar?

    – Venho levantar uma caixa de sementes remetida pela Casa Hortícola do Porto – respondeu o Anastácio.

     
  • ruigodinho1962 23:32 on 02/08/2018 Permalink | Responder  

    Jornada dupla 

    Entre Torre e Mira, entre Sábado e Domingo

    Enquanto os nossos heróis da Estrela cumpriam os seus objectivos e faziam uma tripla escalada da serra, outros dois elementos do pelotão sonhavam com a eventualidade de conseguirem a escalada menos difícil.

    Era um sonho que gostávamos de concretizar. E sábado foi o dia aprazado pelo Vendedor e este Escrivão improvisado. Tudo decorreu de forma absolutamente normal, tanto na ida até Manteigas e no regresso, como na viagem cíclica.

    Absolutamente normal, porque a subida custou imenso aos dois e mais ainda custou a descida ao Periglicófilo, que já sente cada vez maiores problemas em descidas tão acentuadas. Já na subida ocorreu uma distracção que no fim quase era “fatal”: iam ambos pelo Vale do Zêzere acima, queixosos das dificuldades, pois o treino havia sido demasiado escasso para tamanho esforço; parecia que a ambos apetecia parar, já para não dizer voltar para trás! Mas nunca ocorreu essa ideia a nenhum, apesar de todo o esforço.

    Passada mais de metade da subida, este Escrivão emprestado saiu-se com uma daquelas que às vezes nos saem: “Isto precisava era de umas mudanças ainda mais leves, que até vou cheio de dores nas costas!”. E com isso fez o gesto de meter uma mudança, o que normalmente resulta no desconsolo da confirmação de que nada mais há a fazer. Mas desta vez não ocorreu isso, porque não tinha efectuado as devidas reduções à saída de Manteigas. Resultado: boa parte do Vale subida em quarta!!! Foi um treino em esforço, mas que na aproximação à Torre complicou muito. Felizmente a altitude é de 1992 metros; se fosse mesmo de 2000 não teria forças para lá chegar!

     

    Estávamos nessa altitude quando ouvimos um elemento de um outro grupo de cíclicos perguntar de onde íamos. Respondi que era de perto de Febres. “De Febres somos nós”, informou a mesma voz, já antes reconhecida por mim. “Isso sei eu”, disparei, ao que aquele elemento me reconheceu, indagando se aquele seria mesmo o nosso local regular de encontro.

     

    Foi na descida que o Vendedor tirou a barriga de misérias. De tal maneira acelerou que desconfio que, se ele soubesse o caminho para o restaurante em Manteigas, quando chegasse junto dele já estaria a acabar de almoçar!

    Mas não! Almoçámos juntos, cabrito muito bem confeccionado e a preço bem simpático. Como simpático era o casal da mesa ao lado, dois jovens de Porto de Mós que estavam em percurso pedestre pela serra. Desciam quando subíamos mas não conseguimos concluir se era mais dura a subida de bicicleta se a descida a pé com todas aquelas mochilas.

    No dia seguinte cumpriu-se a jornada dupla, com uma ida a Portomar. Pela segunda vez tivemos a companhia do Peninha, em franca recuperação da grave lesão que sofrera.

    Digno de nota apenas o facto de termos chegado um pouco tarde à esplanada. Já lá não estava o sportinguista que nos tinha custeado as natas no domingo anterior…

     
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