Updates from Dezembro, 2019 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 01:26 on 31/12/2019 Permalink | Responder  

    Requintes de malvadez 

    Ainda há dias apresentei três classes de bicicleta: as que circulam, as que jazem destroçadas e as que dão elegância à venda de roupa. Enfrentei a chuva, o vento, os automóveis, a multidão e as filas para apresentar uma quarta categoria: as de arte. Tinha Marcel Duchamp a idade de vinte e seis anos quando tomou em suas mãos o aro de uma bicicleta, manteve-o preso nas hastes da forqueta e espetou o fuso, que devia seguir para o guiador, numa base de madeira parecida com um banquinho de quatro pés. Foi isto em 1913. A obra desapareceu. Duchamp fez outra. Não sei o que lhe aconteceu. Em 1951, já com sessenta e quatro anos, produziu uma terceira versão. Continuou a chamar-lhe Bicycle Wheel. Em 1967, a obra entrou na The Sidney and Harriet Jamis Collection. Neste penúltimo dia do ano de 2019, fui encontrá-la numa sala do MoMA, por onde os visitantes passavam, apressados, para a fila do Van Gogh, o magote dos relógios de Dalí e o grupo das Demoiselles d’Avignon. Só vejo uma bicicleta esquartejada e exposta com os requintes de malvadez de um assassino em série. Se é para admirar, prefiro a cabeça de touro de Picasso.

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  • nunorosmaninho 00:31 on 31/12/2019 Permalink | Responder  

    O Circuito da Curia foi ganho por José Ferreira 

    O dia 1 de Agosto de 1943 coincidiu, que eu saiba, num sábado. Não é dia de descanso, mas o Joaquim e o Maneco desceram decerto da Mata, virados à Pensão Lourenço, e entraram pelas traseiras do parque para assistir à corrida em que eles próprios haviam participado no frescor dos vinte anos. Imagino que se tenham instalado na meta e gritado para os ciclistas, que passaram sessenta vezes à sua frente até decidirem quem seria o vencedor.

    O Maneco e o irmão fizeram os seus juízos e comentários e voltaram a passar pela Capela de Santo Amaro. Não sei o que o Joaquim ainda foi fazer nesse fim de tarde. O Maneco correu a ajudar a avó Águeda na mercearia, de onde, para alguns maledicentes, não deveria ter saído, porque um homem quer-se a trabalhar e não em divertimentos inúteis. Não pude escutar o que disseram. E, assim, cinjo-me, com a maior objectividade, à leitura da notícia de A Voz Desportiva, que, logo na segunda-feira seguinte, descreveu a corrida nos seguintes termos.

    «Como noticiámos, disputou-se ontem em 60 voltas ao Parque da Curia, numa quilometragem duns 80 quilómetros, o Circuito da Curia, que constituiu espectáculo desportivo agradabilíssimo e marcou mais uma boa iniciativa e organização do simpático e progressivo Sangalhos Desporto Club, com a presença de numeroso público.

    À partida alinharam doze concorrentes assim discriminados:

    Sangalhos Desporto Club – José Pardal, José Ferreira, Túlio Pereira, José Serra e Joaquim Simões.

    Académico do Porto – Jerónimo Souto, Belmiro Correia e Vieira da Costa.

    Salgueiros do Porto – Manuel Pereira e Álvaro Carneiro.

    Sporting de Lisboa – Duarte Sereno.

    A prova foi rijamente disputada em especial pelos cinco primeiros classificados[,] que chegaram ao final num pelotão destacado. O facto de dez dos concorrentes terem triunfado em voltas diz claramente da maneira como a corrida se disputou. O vencedor da prova, José Ferreira, foi o que ganhou mais voltas, quinze, mas a volta mais rápida foi a terceira, em 1 m. 40 s., feita por Jerónimo Souto.

    Este ciclista venceu em onze voltas, seguindo-se Pardal, com oito, Túlio, com sete, Belmiro com seis, Bartolomeu e Pereira com quatro, Vieira da Costa com três, e Carneiro e Serra com uma; este foi o vencedor da primeira volta.

    Belmiro Correia ganhou os prémios conferidos aos vencedores da vigésima e quadragésima volta.

    A classificação final foi:

    1.º, José Ferreira (Sangalhos) em 2 h. 9 m. 14 s.; 2.º, Vieira da Costa (Académico); 3.º, Belmiro Correia (Académico); 4.º, José Pardal (Sangalhos); 5.º, Túlio Pereira (Sangalhos); 6,º, Joaquim Simões (Sangalhos); 7.º, Manuel Pereira (Salgueiros); 8.º, José Serra (Sangalhos); 9.º, Álvaro Carneiro (Salgueiros).

    Colectivamente a classificação foi:

    1.º Sangalhos (A), (1.º e 4.º), 5 pontos. Taça Sociedade das Águas da Curia; 2.º Académico (2.º e 3.º), 5 pontos. Taça Primeiro de Janeiro; 3.º Sangalhos (B), (6.º e 8.º), 14 pontos, Taça Veleda; 4.º Salgueiros (7.º e 9.º), 16 pontos.»

    Fiz as minhas contas. O vencedor do Circuito da Curia realizou uma velocidade média digna de apreço: 37,2 quilómetros por hora. A circulatória do parque, por onde os corredores se apressaram a dar as curvas, é em terra batida. Quem quiser, ainda pode ir vê-la como era há setenta e seis anos. Está igual, talvez um pouco mais degradada.

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  • nunorosmaninho 04:11 on 30/12/2019 Permalink | Responder  

    Anuncia-se o Circuito da Curia 

    Em meados de Março de 1943, começou a época ciclista portuguesa com a habitual prova de cinquenta quilómetros. À Bairrada, as corridas chegaram apenas em Agosto e, em nove dias, cessaram. Isso não significa que os atletas do Sangalhos tivessem ficado quietos. Pelo contrário, a presença de Esteves e Pardal nas primeiras provas da temporada foi registada pela imprensa da especialidade. Refiro-me à revista Stadium, que fez o desfavor de encerrar para férias em final de Julho e deixar em branco o que sucedeu na Bairrada no princípio de Agosto. Valha-nos a fiel Voz Desportiva, que em poucas linhas, no dia 26 de Julho, anunciou a próxima realização do Circuito da Curia. Para um erudito destas termas, o apontamento tem o maior interesse. Informa que a corrida se realizaria integralmente no parque termal. Transcrevo a prosa e, se não me esquecer, até a fotografo para servir de documento e de ilustração.

    «No dia 1 de Agosto, pelas 15,30 horas, realiza-se também no aprazível Parque da Curia, que reúne características especiais de pista e estrada, a importante prova “Circuito da Curia”, constituída por 60 voltas ao Parque. Esta prova é organizada pelo Sangalhos Desporto Club, com o patrocínio de O Primeiro de Janeiro e Sociedade de Águas da Curia. […] Pelas suas características a prova oferece magnífico espectáculo onde se pode apreciar bem de perto a beleza da luta atlética proporcionada pelos ases ciclistas.»

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  • nunorosmaninho 16:39 on 29/12/2019 Permalink | Responder  

    Revisão bibliográfica de 2019 

    As Viagens Cíclicas escrevem-se como notícia leve das voltas de bicicleta e profunda das corridas de outros tempos. Para as primeiras, basta estar presente. Para as segundas, é preciso estudar, ainda que perfunctoriamente. Por gratidão e respeito, enumero as fontes de informação a que tive de recorrer quando não presenciei o que descrevo. O resto vem da invenção, própria das crónicas. História é outra coisa.

    1915 Silent Documentary About Bikes, página de Facebook de Weird History, 24 de Agosto de 2019, 1:45.

    Agostinho, Eduardo – «Nelson Neves», Jornal de Notícias, Porto, 10 de Abril de 1968, página «A Bairrada».

    Alves, Laura; Carvalho, Pedro – A Gloriosa Bicicleta. Compêndio de costumes, emoções e desvarios em duas rodas. 2.ª edição. Alfragide, Texto Editores, 2016.

    O António Maria, Lisboa, 14 de Março de 1894, p. 19.

    Beja, Diogo; Azevedo, Joana – Cada Um Sabe de Si. Podcast da Rádio Comercial. Episódio de 16 de Outubro de 2019, minutos 53:51 a 55:10. Entrevista a José Pedro Gomes, actor.

    Boletim da CP. Órgão de instrução profissional do pessoal da Companhia dos Caminhos-de-Ferro Portugueses. Lisboa, ano II, n.º 18, Dezembro de 1930, p. 182; ano XXXVIII, n.º 455, Maio de 1967, p. 19.

    Byrne, David – Diários de Bicicleta. São Paulo, Amarilys, s. d. Título original: Bicycle Diaries. Tradução de Flávio Albuquerque, Anna Lim e Fabiana de Carvalho.

    Calixto, C. – «L’Auto-Vélo au Portugal», l’Auto-Vélo. Automobile, cyclisme, athlétisme, aérostation, esgrime, poids et altères, hippisme, etc., Paris, ano II, n.º 362, vendredi, 11 Octobre 1901, p. 2, coluna 2.

    Correia, Romeu – José Bento Pessoa. Biografia. 3.ª edição. Figueira da Foz, Casino, 2013.

    Dionísio, Sant’Anna – «De Viseu a Santa Comba Dão, por caminho-de-ferro», in: Sant’Anna Dionísio (coord.), Guia de Portugal. 3.º volume. Beira. II – Beira Baixa e Beira Alta. 2. ª edição, 3.ª reimpressão. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 804-806.

    Duarte, Guilherme; Gonçalves, Hugo – Sem Barbas na Língua. Podcast. Episódio de 22 de Novembro de 2019, minutos 43:24 a 43:36. Entrevista a Gregório Duvivier, actor e humorista.

    Duarte, Mário – Ovos Moles e Mexilhões. Bisbilhotice mensal de Aveiro, Aveiro, n.º 1, Março de 1893, p. 32.

    E., R. – «A educação física. A bicicleta e as meninas. Crónica de Paris», Gazeta de Coimbra, Coimbra, n.º 1873, quinta-feira, 25 de Março de 1926.

    Entrevistas a António Ferreira Rolo, Maria Saudade Pires Rosmaninho, Lúcio Ferreira Rolo, Maria (Odete) Ferreira Rolo e Bruno Rosmaninho, em 20 e 27 de Abril, 22 e 24 de Junho, 1 de Setembro e 12 de Outubro de 2019.

    Garrett, Almeida – Viagens na Minha Terra. Lisboa, Círculo de Leitores, 1984.

    Jerome, Jerome K. – Três Homens de Bicicleta. Lisboa, Edições Cotovia, 1992. Título original: Three Men on the Bummel (1900). Tradução de Luísa Costa Gomes.

    Meyerhold, Vzévolod – O Teatro Teatral. Lisboa, Arcádia, 1980.

    Montefiore, Simon Sebag – Estaline. A corte do czar vermelho. Lisboa, Aletheia Editores e Expresso, 2017. Volume III. Título original: Stalin. The court of the red tsar. Tradução de Mário Dias Correia.

    Mundo Gráfico. Revista quinzenal. Lisboa, n.º 1, 15 de Outubro de 1940. Director: Artur Portela. Editor: Rocha Ramos.

    Nogueira, Franco – Salazar. Volume III: As Grandes Crises (1936-1945). Coimbra, Atlântida Editora, 1978.

    Panorama. Revista de arte e turismo. Lisboa, n.os 1 a 4, Junho a Setembro de 1941.

    Pereira, José Pacheco – Álvaro Cunhal. Uma biografia política. Volume I: «Daniel», o Jovem Revolucionário (1913-1941). Lisboa, Temas e Debates, 1999.

    Pereira, Ricardo Araújo – Estar Vivo Aleija. Lisboa, Tinta-da-China, 2018.

    Queirós, Eça de – A Cidade e as Serras. Lisboa, Círculo de Leitores, 1980.

    Ribeiro, Aquilino – Os Avós dos Nossos Avós. Venda Nova, Bertrand Editora, 1990.

    Stadium. Revista desportiva. Lisboa, II série, n.os 1 a 4, Dezembro de 1942 e 1943.

    A Voz Desportiva de Coimbra e sua Região. Jornal semanário. Coimbra, 1940, 1941, 1942 e 1943. Director e proprietário: Amadeu Rodrigues. Redactor principal e editor: J. Branquinho de Carvalho. Administrador: Álvaro Gomes.

    Zweig, Stefan – O Mundo de Ontem. Recordações de um europeu. Lisboa, Assírio & Alvim, 2005. Tradução de Gabriela Fragoso.

     
  • nunorosmaninho 01:47 on 28/12/2019 Permalink | Responder  

    Movimento no blogue 

    Após quase oito anos de actividade, as Viagens Cíclicas, criadas com o fim de irmanar os amigos que se encontram ao domingo para pedalar na Bairrada, pouco passou dessa intimidade, coisa que prezo e desejo. Mesmo assim, e uma vez que esses poucos lêem muito, o blogue ultrapassou, neste ano de 2019, os dois mil visitantes e as quatro mil visitas. Tivemos mais de 2800 leituras de Portugal, novecentas e tal dos EUA, 150 do Brasil, sessenta de Hong Kong, quarenta de França, 35 do Luxemburgo, 25 da Bélgica, vinte da Irlanda, e daqui sempre a descer até aos que surgem por engano. Vê-se o erro nos termos de pesquisa, que nada querem de um bogue de bicicletas.

    A maior agitação coincidiu com os meses de Março e Agosto. Foram muito notadas As velodamas de Tamengos, com fotografias da minha mãe e da tia Odete, O limite e mais além, no qual descrevi o exaustivo esforço realizado para subir a serra da Estrela a partir de Gouveia, e Apaziguado o susto, que conta o episódio verídico do rebentamento de uma bomba aos pés do tio Lúcio por ocasião de uma remota queima do judas. Já em Dezembro, a publicação de um anúncio publicitário da mercearia do Maneco, em 1943, provocou uma reacção afectuosa, que melhor se exprimiu no Facebook do que no próprio blogue, onde tudo é sóbrio e sereno. Cinco homens de bicicleta e Defesa e elogio do vendedor, que narram as idas a Tomar, mereceram duas ou três dezenas de leituras. De trás, vem um par de notas que são os best-sellers das viagens cíclicas. O sucesso da que se intitula Madame Odete resulta de um equívoco, porque essa simples volta a Cantanhede, entre tantas que já se fizeram, não é digna de nenhum cuidado particular. O outro êxito, com a epígrafe Vis(i)tas cíclicas (2) – Moinho do Pisco, provém de um mérito intrínseco: é um verbete completíssimo escrito pelo Periglicófilo. Joaquim Rosmaninho na Volta a Portugal de 1933 também continua a merecer atenções, o mesmo se podendo dizer de O mito e a imagem da árvore podre, que suscita interesse nostálgico em Tamengos.

     
    E quanto aos quilómetros andados por cada um dos ciclistas destas viagens? Digam coisas. Eu bati no mínimo de sempre. Vocês, graças ao bom tempo da última semana do ano, ainda podem compor os resultados de 2019. O intrépido Informático Motard mantém viva a possibilidade de subir o Caramulo, projecto inviabilizado pela chuva que tomba desde Outubro. Recebemos uma mensagem sua com a seguinte intimação: «Amigos, domingo fazemos a última tentativa de subir o Caramulo? Abraços.» Amigo, não posso ir pela quietude da serra até ao píncaro nublado e frio. Estou a ver as bicicletas de Manhattan. Vão vocês e digam-me como foi.

     
    • topedrosa 08:41 on 02/01/2020 Permalink | Responder

      Pouco mais de 3.260 km nos primeiros 9 meses, 170 km no último trimestre, colocaram 2019 como sendo o 3º pior ano que registo. Mas não há que desanimar, as estatísticas para 2020 dizem que posso chegar aos 8.600 km se continuar com o mesmo ritmo desde o início do ano. 🙂

    • nunorosmaninho 05:12 on 05/01/2020 Permalink | Responder

      Se os quilómetros fossem anos, as pedaladas só me levaram à segunda metade do século XIX, andava Eça de Queirós a escrever farpas e a preparar-se para ir como cônsul para Cuba. Literatismos à parte, andei 1871 quilómetros em 2019, o pior registo desde que se criou o grupo das viagens cíclicas. Em 2020, espero galgar o futuro e tocar o século XXXI.

    • nunorosmaninho 15:55 on 19/01/2020 Permalink | Responder

      O Físico alcançou a notável marca de 4085 quilómetros, a despeito de ter parado com as chuvas do Outono. O Vendedor fez ainda melhor: 4200 quilómetros. Está explicada a sua qualidade atlética em 2019.

  • nunorosmaninho 16:32 on 27/12/2019 Permalink | Responder  

    A febre do ciclismo e a memória de antigas sacanices 

    Na região centro de Portugal, a brotoeja do ciclismo era um calor inofensivo e passageiro que se resolvia em pouco mais do que o Verão. Era isso que sugeria a Voz Desportiva, de Coimbra. Para Gil Moreira, que via este desporto a partir de Lisboa e com um interesse militante, a entrega revelada em Março pelos atletas, sobretudo os mais jovens, era «desvanecedora». Treinos intensos e transferências de amadores eram os bons augúrios do princípio da Primavera. Havia método nos treinos, velocidade e entrega. Os corredores do Rio de Janeiro andavam por Sintra e Cascais. Os da Iluminante passavam dos cem quilómetros ao domingo. Os de Sangalhos não deixaram notícia, mas também deviam andar para a frente e para trás na Bairrada, uma vez que se apresentaram nas primeiras competições nacionais de 1943.

    Entretanto, ainda se ajustavam contas da época transacta. Continuava a dar que falar uma troca de bicicleta feita no Circuito da Curia em 1942. O regulamento geral das corridas preceituava que, «em caso de avaria, o corredor não pode ser ajudado na reparação». Sendo assim, houve infracção no facto de um corredor ter mudado de bicicleta «para voltar a recebê-la já com novos boyaux». Esta norma, discutível, talvez devesse ser alterada porque nasceu no início do século XX, quando, explica Gil Moreira, «os corredores, a pretexto de terem as máquinas avariadas, as entregavam a treinadores e mecânicos, para eles fazerem parte do caminho de automóvel…» Os sacanas!

     
  • nunorosmaninho 17:17 on 24/12/2019 Permalink | Responder  

    Prosaísmo e sofisticação 

    Em ano e meio, que é o tempo que levo de observação das ruas de Manhattan, caiu o número de bicicletas destroçadas, presas pela trela a sinais de trânsito, postes e círculos de estacionamento. Quarenta quilómetros palmilhados entre Chelsea e o Central Park trouxeram-me um quadro de patas para o ar, uma carcaça desprovida de membros mas com guiador, um velocípede ajoelhado na forqueta e uma simples roda dianteira à qual os larápios subtraíram tudo o que lhe conferia o aspecto e a função de uma bicicleta.

    Esses pobres corpos mutilados lembram-me pessoas sem abrigo, que se vêem e ignoram. As bicicletas que circulam são prosaicas como os ciclistas que as cavalgam para irem de um lugar a outro. A emanação elegante da velocipedia serve-se em Times Square, para vender vestuário com sofisticação.

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  • nunorosmaninho 13:02 on 22/12/2019 Permalink | Responder  

    Amália de Proença Norte 

    Muitos dos fregueses do avô Maneco, do senhor Egídio, homem ponderado e conversador que tantas vezes escutei em diálogo com o meu pai, do senhor Gomes, que já não conheci mas criou a mercearia do Espinhal que depois os meus pais compraram, vinham de Lisboa, pelo comboio, para os hotéis, as pensões e as casas de aluguer das termas da Curia. Tornavam-se, assim, clientes directos ou indirectos. A minha mãe ainda hoje conta que, por volta dos catorze anos, ia bater à porta desses estabelecimentos como cobradora do Maneco.

    Apesar da guerra, os lisboetas abandonaram a cidade para se refugiarem nas estâncias de veraneio. No Verão de 1943, ao chegar à estação ferroviária do Rossio, a escritora Amália de Proença Norte ficou surpreendida com o extraordinário movimento de pessoas. O calor sufocante da segunda quinzena de Junho precipitara-as para o estribo dos comboios, mas algumas, de malas feitas, não conseguiam bilhetes. Houve logo rapazes espertos que se puseram nas longas bichas para serem remunerados pelo lugar, obtendo em cada tarde o considerável lucro de 150 a 200 escudos. Ela conseguiu, creio que sem estipêndio adicional, um lugar no Rápido, que em poucas horas a pôs no Palace Hotel da Curia, onde estavam mais de duzentos estrangeiros, «quase todos rapazes novos».

    Amália de Proença Norte apreciou o requinte e conforto do hotel e o «pessoal muito activo, educado e cativante». «Todos parecem satisfeitos», escreveu referindo-se aos estrangeiros e a algumas famílias portuguesas. Ela própria se sentiu maravilhada pela Bairrada, coberta de milharais e vinhedos, embalada «por mil ruídos de insectos e pelo trinado das aves». Em carta a uma amiga, exaltou o parque termal, os jardins e a «mesa magnífica» do Palace e, «principalmente», diz ela, «o espectáculo sempre novo e impressionante» de «mais de cem rapazes louros e atléticos» em diversão na piscina.

     
  • nunorosmaninho 12:38 on 16/12/2019 Permalink | Responder  

    Maneco, Egídio, Gomes, Emílio e Pinto 

    A revista Renascença, do Porto, apresentou no primeiro de Junho de 1943 um artigo sobre a Curia, apoiado em quatro ilustrações e publicidade aos hotéis e comércio da estância termal. Entre as mercearias, lá estão as de Egídio Pimentel das Neves, José de Ascensão Gomes e do avô Maneco, perdão, de Manuel Gomes Rosmaninho Júnior. Também encontrei um anúncio da União Velocipédica da Beira Litoral, L.da, de que nunca ouvi falar. Na Curia, relacionado com bicicletas, só conheci a oficina do Emílio. Ter-se-á ele instalado na Curia com um estabelecimento de tão grandiosa factura nominal? Lembro-me dela entre o talho e a alfaiataria do Heitor, escura, atulhada de bicicletas, recamada de óleo, estendendo-se com grande liberalidade para o passeio, onde se percebiam melhor os furos das câmaras-de-ar. Não, o Emílio nunca sobraçou uma sociedade ciclista desta responsabilidade. O estabelecimento também não correspondia à oficina do senhor Joaquim Pinto, no cruzeiro do Murtal, em Tamengos. Basta de delongas. A publicidade mostra que a União Velocipédica da Beira Litoral se posicionou na importante Estrada Nacional. Nada sei sobre ela.

    A propósito do Maneco, a Nininha lembrou-me anteontem de um episódio engraçado. O burrito que ele tinha, e que por estas páginas já apareceu fotografado, fugiu do curral e foi ter ao largo da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos. Aqui estava, em frente da mercearia, um sardinheiro, que fazia a sua vida com um burro, de cujo dorso pendiam duas seiras cheias de peixe. Quando os dois jumentos se viram, foram um para o outro e enfrentaram-se. Isso equivaleu, se bem imagino, a erguer as patas, rodar o corpo e escoicinhar. O ruído atraiu os fregueses e o pobre sardinheiro, que via o seu sustento espalhado pela estrada. O avô, que era boa pessoa mas incapaz de resistir ao que tinha graça, não parava de rir. Riu tanto, que o episódio ainda hoje se conta por causa disso. Depois, ajudou o sardinheiro a apanhar os peixes.

     

     
  • nunorosmaninho 17:39 on 15/12/2019 Permalink | Responder  

    Assomo de energia mansa 

    A brotoeja primaveril do ciclismo reacendeu-se em final de Maio. O senhor M. Gaspar incandesceu a epiderme com uma pergunta auspiciosa: «Porque não há-de reviver o ciclismo regional?» Fui, apressado, ler a resposta, servida em pouco mais de uma coluna de jornal. Carência de peças de bicicleta no mercado? Talvez. Ausência de interesse do público? Nem pensar. Falta de boas estradas? Escolham-se circuitos pequenos, que têm a vantagem de facilitar o trabalho de apoio aos concorrentes. Na sua opinião, Coimbra tinha, em 1943, catorze quilómetros de estradas de primeira qualidade no percurso que antigamente se chamava Volta à Conraria, com uma parte plana, boas subidas e grandes descidas. Estou mais ou menos a citar. Penúria de organizadores? De certeza que sim. Porquê? Pelos «grandes encargos» resultantes da presença dos ases. Então, o que fazer? Apelar às «forças vivas» da cidade de Coimbra, a saber: comércio, indústria e clubes locais. Eis o reluzente alvitre do senhor M. Gaspar. Tão bem que ele estava a ver as andorinhas a chegar a Coimbra.

     
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