Este título almadiano, de tão leve aparência, ri-se do esforço violento. O leitor, indiferente aos pormenores, só quer saber se os ciclistas chegaram à Torre. Sim, mas a serra encrespou-se como o Adamastor e fez de quase todos eles pobres Sísifos. Quase todos?, pergunta o leitor atento. Algum enfrentou aqueles penhascos sem tremer? Sim, o Rúben. Fez tudo muito lampeiro e, quando lhe apetecia, empregava o dobro da velocidade, ousando voltar atrás nas piores subidas e disputando o troço final com um comparsa de ocasião.
Nesta terceira incursão à serra da Estrela, formaram-se dois grupos. O Rúben, o Informático Motard, o Periglicófilo e o Escrivão foram por Seia, São Romão e Valezim, passando à margem de Loriga. O Informático Ferroviário e o Vendedor seguiram de automóvel até Manteigas e aqui fizeram o caminho do glaciar. Cada um escreverá as suas impressões. Só tento apanhar a ideia geral. Ao grupo de Loriga, chegaram duas notícias dos colegas: primeiro, que já tinham partido; segundo, que o Ferroviário talvez ficasse no promontório rochoso.
O Escrivão manteve sem quebras o discurso de caçador, que a a canícula legitimava. O Adamastor iria ser encarado entre as 12 e as 14 horas, com temperaturas acima de trinta graus. Para o superar, a táctica consistia em seguir sempre devagar ou, em linguagem futebolística, jogar com um autocarro à frente da baliza. Depois de Valezim há uma rotunda, e daqui até ao cruzamento com a estrada do Sabugueiro apresentam-se nove ou dez quilómetros que os cuidadosos ciclistas planificaram em três segmentos. A inclinação varia entre os dez e os catorze por cento. Mas o último, santo Deus!, como é possível fazê-lo sem desistir? O Rúben foi captando em vídeo o estado dos ciclistas. Em quase todos aparece o Escrivão a dizer: Isto afinal é fácil! Raivas de quem vai cansado. Desesperos de quem anseia por ladeiras de nove por cento para descansar.
A chegada ao cruzamento teve alguma coisa de heróico. O Adamastor estava batido, mas a viagem ainda não terminara. O Periglicófilo dizia que Loriga nunca mais, e foi-se distanciando até à Torre. O Motard arrependeu-se de ter feito o Moinho do Pisco dois dias antes em 26 minutos e pouco, e foi logo falando na próxima subida pela Covilhã. O Escrivão dizia que só queria chegar à Torre, e depois se tratava da Covilhã. Nunca vi tanto respeito pela serra. O Rúben seguiu em grande velocidade até ao topo.
Escassas centenas de metros antes da Torre, o Motard gritou de contentamento quando viu o Ferroviário. Afinal, não suspendera a ascensão, apenas tomara balanço. Lá em cima, estavam já o Vendedor, o Rúben e o Periglicófilo. Beberam muita água e coca-cola, tiraram fotografias e caminharam pouco. As pernas presas davam-lhes um andar estranho, que o Rúben se esqueceu de filmar.
No início da jornada, que demorou três horas e quarenta e oito minutos aos de Loriga, o Escrivão chegou a manifestar a intenção de se sentir vaidoso se chegasse à Torre, isto na condição de ninguém dizer ao senhor Vasconcelos. Os colegas prometeram logo o contrário. Afinal, tudo se dissipou. Em pleno esforço não há lugar para a vaidade. O Escrivão sobreviveu e quando terminou apenas sentiu alívio.
O prazer do descanso manifestou-se na descida para Manteigas, onde abunda a água que falta na encosta de Loriga. O Ferroviário fez o favor de sinalizar uma torrente fresquíssima onde se encheram os cantis. O repouso propriamente dito aconteceu na esplanada do restaurante, passava já das três da tarde. O calor de 34 graus (estimativa) amodorrou os ciclistas que, um a um, foram confessando a vontade de dormitar. Em vez disso, apanharam os automóveis e regressaram a casa. Duas horas de viagem. Lá longe, em Trás-os-Montes, o Jorge, o Gonçalo e o Vítor estavam estendidos no hotel a ver a Volta à França pela televisão e a pensar que seria com este calor brutal que no dia seguinte fariam a prova de 157 quilómetros e quase 3300 metros de elevação acumulada.
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