Updates from Janeiro, 2014 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 12:16 on 27/01/2014 Permalink | Responder  

    O regresso da cinderela – Cantanhede, 26 de Janeiro de 2014 

    O Lenhador foi especificamente contactado para saber se a sua divina vontade desejava percorrer as planuras bairradinas num domingo que se adivinhava sombrio. Respondeu a cinderela: «Tenho chuva.» E teve! O cegueta do Escrivão só reparou nisso quando saiu de casa e sentiu a morrinha no rosto. Ligou ao Periglicófilo, que falara com o Informático, que achava que não era nada. E foi assim que às nove horas se encontraram na Mata e decidiram ir a Cantanhede com trânsito por Campanas e regresso pela Pena. Chegaram à Nova Cidade devidamente encharcados e em grande estilo. O Paulinho continua a beneficiar do milagre de Fátima. Mas digo-o aqui à puridade que tem outro segredo: anda a comer uns flocos especiais. Essa alimentação gourmet (o que eu detesto esta palavra!) já foi adoptada com grande sucesso pelo filho. No jogo de futebol da semana passada, o Rúben recebeu uma bola fora da área, «matou-a» no peito e disparou para golo. Graças à energia de Fátima e dos flocos, o Paulinho empreendeu uma chegada veloz, já depois de o Físico ter posto o pelotão a quarenta à hora na leve descida para Cantanhede. Aproveitando a ausência do Lenhador e a abundância de tempo, pararam em Sepins. Camarão, bolo, espumante… Desgraçados! Nos cabeços que levam de Ventosa para Tamengos coube ao Periglicófilo o último arranque. Ainda agitaram a sineta do Lenhador mas ele não estava em casa. Também odeio coisas, produtos, obras e projectos «de excelência».

     
  • nunorosmaninho 16:07 on 23/01/2014 Permalink | Responder  

    Notícia de homenagens no regresso a Anadia 

                No meio da ponte de Espairo, cruzámo-nos com um ciclista. O Glbert conhecia-o. Atirou-lhe um grito, travou a fundo e foi-se a ele para o cumprimentar. Era o correspondente de A Ideia Livre na Curia. Tinha uns apontamentos para o jornal e não sabia se havia espaço. O Joaquim Rosmaninho fora objecto de duas homenagens, a primeira em 17 de Setembro, tendo-lhe sido dada uma medalha, e a segunda três dias depois, à noite. O correspondente, cujo nome não percebi, referia-se ao «nosso estremecido corredor» e ao «simpático embaixador da Bairrada na IV Volta a Portugal».

                – Esteve nessas festas? Recolheu matéria noticiosa? – Perguntou-lhe o Gilbert.

    E o homem, muito compenetrado, respondeu-lhe que sim:

    – «De uma e de outra fizemos reportagem e as tornaremos conhecidas dos nossos leitores, se a ilustre redacção de A Ideia Livre o permitir.»

    Voltámos a montar as bicicletas e encaminhámo-nos para Anadia. Questionei o Gilbert.

    – Será que vão deixar as reportagens sem publicação?

    Ele encolheu os ombros. Gostaria de as ver na página de «Sports», mas não lhe cabia decidir. Enchi-me de zelo:

    – Veja lá isso… Se não for o jornal a registar estas coisas, nada ficará que lembre o Joaquim Rosmaninho.

    – Ora, não diga tal. É lá possível que as pessoas esqueçam…

    – Ó meu amigo, isso é o que mais acontece.

    – Pois, não sei.

    Estávamos a passar a Estrada Nacional e ele já só via a ladeira.

    – O melhor é irmos com calma. Este calor não está para pressas.

    O Anastácio, bem lembrado da correria no pendente oposto, concordou:

    – Isto até faz mal.

    E foi o primeiro a desmontar para subir a pé.

     
  • nunorosmaninho 12:19 on 21/01/2014 Permalink | Responder  

    Joaquim Rosmaninho: a entrevista 

    Avenida José Luciano de Castro, que o Anastácio subiu com entusiasmo.

    A energia do Anastácio começou a abrandar a meio da subida. O bigode farfalhudo já não tapava a boca, que abria e fechava como a de um peixe.

    – Isto nunca mais acaba, senhor Escrivão!

    O Anastácio exprimia assim o desatino dos ciclistas que vêem o topo das subidas fugir-lhes a cada pedalada.

    Mas acabou. E depois descemos, atravessámos a Estrada Nacional, passámos Espairo e prosseguimos na bela estrada de macadame que conduzia às termas da Curia.

    – Ó Anastácio, ainda temos a ladeira do Grande Hotel.

    – Qual quê! Essa não subo eu. É nova, está muito bonita, mas prefiro ir pelo parque. Sem trabalho nenhum, estamos logo na Pensão Lourenço.

    E era por aqui que efectivamente todos circulavam ainda. Parámos em frente do balneário e tirámos uma fotografia que, sem saber como, saiu com quinze anos de atraso. Podem ver o Leopoldo de Tamengos, em primeiro plano, e alguns aquistas a caminho da buvette.

    Curia

                            Quando chegámos à Mata, já por lá andava o jornalista da Ideia Livre. Assinava Gilbert e tinha ido de bicicleta, como nós. Perguntou aqui e ali pelo Joaquim Rosmaninho, «o popular e valoroso corredor bairradino», e foi encontrá-lo em casa, Entrou e explicou ao que ia. Por esta ordem, note-se bem. Nós seguimos com ele e ficámos quietos e caladíssimos a ouvir.

    «Então está satisfeito com a Volta a Portugal?

    Como os outros corredores da província, estou sentido, pelo pouco cuidado que houve connosco, principalmente em nos fornecerem o ap**oio.

    E foi muito prejudicado por isso?

    Quantas vezes, em etapas, perto da chegada, ia em bom lugar, mas a falta de apoio obrigava-me a atrasar e ainda por injustiças, como me sucedeu na etapa Aveiro-Figueira, que a quatro quilómetros da chegada tive um furo e o Manuel Bento, da Figueira, que me acompanhava, prontificou-se a emprestar-me a máquina em que ia, ficando a arranjar a minha. Veio um dos organizadores, perto de mim, e falou-me de um modo arrogante:

    – Então você por ter um furo é preciso mudar de máquina? Desça imediatamente se não quer ser desclassificado.

    Desci e lá fiquei eu mais uma vez, com a minha paciência, a reparar mais um furo, enquanto os outros passaram por mim; mas mais adiante, uns conterrâneos do Alves Barbosa esperavam-no com uma bicicleta de pista, que ele substituiu por aquela que levava fazendo que teve um furo e nem sequer lhe disseram nada. E eram assim destes casos que me desanimavam bastante e que muitas vezes me impediram de fazer maiores esforços.

    Fazemos ideia da sua arrelia…

    Não calculam mesmo. (Interrompeu-nos.) Só uma grande força de vontade fez com que eu não desistisse, como alguns pensavam, quando eu passasse em Anadia… Mas não. Poderiam faltar outros tantos quilómetros para percorrer, que eu chegaria ao final.

    Pelo que nos diz, foi então alvo de muitas injustiças, como os outros corredores da província e são verdadeiras as vossas reclamações que a República publicou e que A Ideia Livre transcreveu no último número.

    São inteiramente verdade. Quando cheguei ao Estádio, nem um organizador me apareceu. Depois de esperar umas duas horas, consegui então dificilmente um banho e limpei-me à camisola com que corri, cheia de pó e suor. Viu-me, depois, a D. Ercília Costa, que já me conhecera em Viseu, mais o sr. José Salgueiro e é que pagaram o automóvel para eu, com o Dias e o Pigarro, irmos para o hotel, senão teríamos de ir a pé para a Baixa.

    E era essa a boa organização que os jornais apregoavam…

    Ora… ora: Os jornais!… Quantas e quantas vezes passei eu, a comandar o pelotão dianteiro, em diversas localidades e só raras vezes é que eles o noticiavam. Na etapa Aveiro-Figueira, de Sangalhos a Ponte de Viadores, o pelotão dianteiro foi sempre comandado por mim, quando os jornais diziam que o primeiro a passar na Mealhada foi o José Marquez.

    Tem razão, Rosmaninho. Para eles não lhes interessava noticiar as vezes que vocês se salientavam.

    Nós, os da província, nessas alturas, nunca éramos vistos, nem quando tínhamos qualquer percalço. Na etapa Beja-Évora, não havia apoio. Os carros seguiram na mesma os corredores de Lisboa e levantavam uma densa nuvem de poeira que me envolveu, juntamente com o Germano, por irmos um pouco atrasados. Chegámos a pontos de não podermos respirar pelo nariz e fomos obrigados a manter a boca aberta até vomitarmos o almoço, por não termos já uma gota de água! Era horrível! Não sou mesmo capaz de explicar-lhes.

    Pelo que vemos, temos de terminar por aqui…

    Sim, é melhor, porque se vou a contar tudo quanto passei…

    Agora… o que não tem remédio, remediado está e, como você vai, para o ano, participar na V Volta, isso será tudo recuperado…

    Deu-lhe vontade de rir, e respondeu-nos:

    Com 33 anos, já não posso aturar estas coisas…

    Então não volta a correr?

    Volto. Com certeza já no próximo domingo na Volta dos Campeões na Figueira da Foz.

    Se for, provavelmente lá nos encontramos.»

    Dito isto, entrevistador e entrevistado deram um aperto de mão e o encontro terminou.

    – Foi boa a entrevista. – Disse eu para o Gilbert. – Mas esqueceu-se da fotografia. Daqui a oitenta anos, por mais que faça, não encontrarei uma única em bom estado.

    – Havemos de falar nisso ao Dr. Carlos Pereira. Vão para Anadia?

    – Temos lá o automóvel. – Informou o Anastácio.

    Fizemos o caminho inverso, penando onde antes descansámos e descansando onde antes penámos. Ali pelo Casarão, pedimos que nos retratassem. Lá estamos os três: o Gilbert à esquerda, este vosso criado ao centro e o Anastácio fora de mão, de boné, bigode escondido na sombra. Grandes tempos estes!

    Casarão

     
  • nunorosmaninho 10:41 on 20/01/2014 Permalink | Responder  

    Sol, balística e foguetões – Portomar, 19 de Janeiro de 2014 

    Quem no sábado à tarde visse a chuva caindo com persistência mal podia adivinhar que o domingo de manhã seria seco e até com sol. O Periglicófilo fez o prognóstico certo e convenceu o Lenhador, que se apresentou determinado embora com aquela inércia que vem das longas inacções. Mas compareceu e isso foi uma vitória que a próxima semana há-de atestar. Os atletas dirigiram-se a Portomar, onde há muito não atracavam. Chegaram quando a esplanada ainda estava vazia e magnificamente ensolarada. O Lenhador salientou a velodama que acabara de chegar (coisa rara, como se sabe) e deixou para outros a verificação do valor das bicicletas. Foi bem sentados que dissertaram sobre os mais elevados assuntos da ciência, a saber, a balística aplicada na I Guerra Mundial, os fundamentos da previsão meteorológica e a diferença entre foguetes e foguetões. E tão absorvidos estavam que se abstraíram da magna problemática dos aviões sentados que já naquele lugar, em tempos, foi objecto de calorosa troca de pontos de vista. Enfim, são homens de elevada estatura intelectual, por assim dizer alheios ao mundo, acima do mundo, enfim fora do mundo. É com tristeza que escrevo isto, esperando que actue como um aviso no espírito dos companheiros que me habituaram (e aos leitores) a outro padrão narrativo. Resta-me dizer que a viagem se realizou dentro da maior normalidade, tanto na ida como no regresso. Ao chegar a Horta, o Lenhador inflectiu para a Cabreira de modo, diz ele, a chegar mais depressa e com menos esforço a Tamengos. Ora isso é coisa que não se entende porque se fosse primeiro à Mata apenas desceria, enquanto indo pela Cabreira é obrigado a subir. Ninguém o convence deste facto. Há momentos em que o Lenhador e o Geógrafo se desencontram.

     
  • nunorosmaninho 09:49 on 16/01/2014 Permalink | Responder  

    Discussão de café 

    O Joaquim Rosmaninho voltou à sua terra, não de carro como nós, bem acomodados no Packard do Anastácio, mas por certo de comboio. Talvez se tenha apeado na Curia e sido festejado pela família e pelos amigos, como merecia. Para essa hora e esse local, não tive boleia. Mas não quis despedir-me da Volta a Portugal de 1933 sem ouvir o que se dizia pelos cafés de Anadia. Seria possível lá chegar? Entrar no café da Praça do Município, seguir as conversas de circunstância e voltar às viagens cíclicas? Os bigodes do Anastácio ergueram-se de alegria quando expus o plano.

    – Sabe o que lhe digo? Vamos lá, vamos agora e vamos de bicicleta!

    – Ora, ora! De bicicleta, nem a 2013 conseguimos chegar…

    – Não está a entender. Deixamos o automóvel nas Fontes, junto ao matadouro, e apanhamos duas bicicletas para o meu amigo ajudar ao monte na entrada do café. Está a ver aquelas bicicletas todas nas modernas estações ferroviárias do norte da Europa? Em Anadia, há oitenta anos também era assim. Ainda lho hei-de mostrar com detalhe.

    Persuadido pela loquacidade do Anastácio, fomos outra vez a Setembro de 1933. As mulheres lavavam a roupa no tanque público e riam alto. Não foi preciso pedalar muito para chegar ao café. Seria fim-de-semana. À entrada, havia pilhas de bicicletas, ensarilhadas em várias filas. Dentro, só homens, falando com entusiasmo. Os mais ruidosos estavam de pé, encostados ao balcão. Não discutiam os méritos dos atletas e sim os deméritos da organização da Volta.

    – «A organização foi péssima.» – Dizia com fúria um homem aí dos seus cinquenta anos batendo com o copo no balcão. – «Havia consideração por uns, não havia por outros, não queriam saber se uns tinham apoios, se outros o não tinham, etc., etc.; e então por aqueles que se ferissem muito menos!»

    Ao lado, raspando um pé na serradura que cobria o chão, um indivíduo magro e enérgico só esperava a oportunidade de intervir:

    – «Isso! Isso!… Essa agora foi acertada! A República e o Diário da Noite é que dizem como era feito esse imediato socorro e como os concorrentes restam satisfeitos da prova, pela sua boa organização!…»

    Mas havia quem não concordasse. Estou longe de perceber porquê.

    – «A República e o Diário da Noite mentem!»

    – «Quem é que os desmente?» – Retomou o segundo homem. – «Quem diz que a entrevista que A Ideia Livre transcreveu, no passado número, da República, é falsa? Quem?»

    «Como ninguém respondeu afirmativamente, começaram a desviar a conversa, a misturar “alhos com bogalhos” e chegou a discussão a uma algazarra tão desconforme, que até S. Pedro, sentindo lá em cima, exclama, surpreendido, cá para baixo, ao S. Onofre, que assistia à discussão:

    – Queres que mande picaretas?

    – Não que não tens pontaria. Manda antes uma chuvinha que isto são nervos exaltados.»

    Foi só tempo de tomar um café de saco. (Isto diz-se? Alguém entende?) O Anastácio arrastou-me para a rua.

    – O sr. Escrivão ainda não sabe, mas temos de ir à Mata da Curia.

    E parou a desfrutar o meu espanto.

    – O Joaquim Rosmaninho vai dar uma entrevista à Ideia Livre. Imaginei que quisesse assistir.

    O malandro estava a divertir-se à minha custa.

    – Prometi-lhe uma entrevista, não é verdade? Aquilo em Lisboa foi só uma fala.

    Montou a sua pasteleira e ficou a olhar para a Avenida José Luciano de Castro, que se empinava a partir do estabelecimento de Justino Sampaio Alegre.

    –Vamos de bicicleta, que é para o sr. Escrivão saber como elas moem neste tempo. E ainda havemos de chamar o Físico. É o único que foge desta ladeira todas as semanas para ir pelo Cabecinho.

    Já mal percebi as últimas palavras, gritadas com um entusiasmo infantil dez metros à minha frente. É melhor apressar-me. O Anastácio anda folgado.

     
  • nunorosmaninho 10:26 on 14/01/2014 Permalink | Responder  

    Os cavaleiros do apocalipse – Cantanhede, 12 de Janeiro de 2014 

    O título foi dado pelo Periglicófilo quando já íamos das Campanas para Cantanhede. Só ele poderá dizer se a lembrança lhe veio do número, da cor dos cavalos ou da índole dos cavalgantes. Ou do seu temível aspecto. Na verdade, a mãe do Escrivão, deslizando pacificamente pelas avenidas novas da Curia às nove da manhã, na sua velha bicicleta, nem os conheceu, nem os cumprimentou. Mas como podem ser do apocalipse? Nenhum encarnava a fome, pois todos comeram as natas da Cidade Nova. Para a guerra, faltava o valente Alcédix, que nos segue na Gália. Digno de encarnar a peste, no sentido de quezilento e irascível, não temos ninguém, como sabem. Do último cavaleiro, não falo nem a brincar. O tonitruante título talvez venha da audácia com que enfrentaram os prenúncios de chuva. Enfim, nem todos. Um ficou em casa queixando-se da chuva que ainda não tinha caído. Seria o quinto. Mas não havendo cinderelas no Apocalipse, não lhe sobra lugar neste episódio.

     
    • ruigodinho1962 11:14 on 14/01/2014 Permalink | Responder

      Essa ideia dos cavaleiros deveu-se simplesmente à intrepidez com que os quatro encararam as adversidades que se faziam sentir, mais aquelas que se adivinhavam e temiam. Nada os fazia deter na sua cavalgada!!!

  • nunorosmaninho 10:31 on 10/01/2014 Permalink | Responder  

    Três ciclistas zangados 

    O Packard do Anastácio é um belo automóvel. Ainda há dois anos ficou em segundo lugar num concurso de beleza organizado pelo Palace Hotel da Curia. Nos seus estofos confortáveis, senti-me adormecer e logo acordar em frente da redacção de O Ideia Livre.            – Então isto é que é Lisboa? – Perguntei, trocista, ao Anastácio.

    – É só um instante. O dr. Carlos Pereira vai connosco.

    Efectivamente, a uma buzinadela, o director do jornal assomou à porta e atravessou a estrada na nossa direcção.

    – Boas tardes! Vamos lá. Parece que aquilo lá por Lisboa deu raia.

    – Raia?

    – Pois. Os ciclistas da província, desenquadrados das grandes equipas, têm-se queixado de falta de apoio.

    – Ora essa! – Lamentei eu. – E o Rosmaninho como se saiu?

    – Chegou ao fim da Volta «em 19.º lugar na classificação geral e em 1.º na classificação regional». – Disse o dr. Carlos Pereira com o seu jeito ponderado. – «Mas só uma grande força de vontade, através de tantos percalços e injustiças de que foi vítima, agravados com a “boa organização da prova”, conseguiu que se mantivesse até ao final, nesta competição em que tantos desistiram.»

    – Foi assim tão mau?

    – Tenho poucas dúvidas, meu amigo. No entanto, «para que possamos fazer uma pequena ideia da beleza com que o Rosmaninho e os corredores da província foram amavelmente tratados durante a Volta», torna-se necessário ouvi-los. Consta-me que o Rosmaninho, o Domingos Dias e o José Pigarro vão dar uma entrevista ao República. É para lá que vamos!

    Dito isto, estávamos em Lisboa. E era noite. A «faina diária» deste jornal estava terminada. Já nas ruas ele andava a ser apregoado. Com surpresa, os jornalistas viram entrar pela redacção «três rapazes fortes, equipados à ciclista». «Não os conhecíamos», disse mais tarde o responsável pela condução da entrevista, «e foram eles que se apresentaram: José Pigarro, Domingos Dias e Joaquim Rosmaninho, os dois primeiros do Porto e o segundo de Anadia.»

    «Disseram eles pela boca de José Pigarro:

    – Vimos aqui à República apresentar as nossas despedidas, visto que partimos amanhã para as nossas terras, e agradecer tudo quanto a República fez por nós, os corredores modestos, os que não iam à frente e raramente tiveram apoio. E vimos também protestar contra a maneira como os organizadores nos abandonaram em Lisboa.

    – Como foi isso?

    – Deixe-nos dizer que só à República, exclusivamente à República, devemos aquele reduzido auxílio que nos foi prestado durante a prova. Se não fossem os senhores, certamente que teríamos desistido, porque nos teriam abandonado em absoluto.

    – É verdade que o José Pigarro e o Domingos Dias foram para uma pensão ordinária, com os chauffeurs e ajudantes, enquanto os outros ciclistas se instalaram em bons hotéis?

    – É inteiramente verdade!

    – É verdade que os últimos ciclistas não tinham apoio dos organizadores?

    – É absolutamente verdade!

    – É verdade que o carro da República os auxiliou algumas vezes no decurso da prova?

    – Muitas vezes, mesmo.

    – E como foi isso da chegada a Lisboa?

    – Abandonaram-nos por completo. O Rosmaninho, se se quis limpar, depois dum banho difícil de conseguir, teve de servir-se da própria camisola com que correra, cheia de pó e suor! Valeu-nos, aos três, a gentil cantadeira D. Ercília Costa e o sr. José Salgueiro, que nos pagou o automóvel para podermos vir para o hotel e nos obsequiaram em sua casa, e a Vassalo de Miranda. Se não fora D. Ercília Costa e o sr. José Salgueiro, teríamos de vir a pé até à Baixa.

    – Quem vos disse para virem à República?

    É Joaquim Rosmaninho que responde:

    – Não lhe sei dizer o nome. Sei só que, esta manhã, ao almoço do Suisse Atlantic Hotel, onde estávamos hospedados, dissemos que vínhamos à República protestar contra os organizadores e felicitar o jornal pela sua atitude. E sei também que um senhor nos disse: –“Vocês fazem mal em ir a esse jornal. Lembrem-se de que para o ano também há corrida e, depois, não são convidados…”

    Não quisemos ouvir mais, nem precisávamos. Fizeram-se fotografias e acabou a entrevista com os três simpáticos e valorosos corredores provincianos.»

    Na fotografia, o Pigarro, franzino, ficou descontraído. O Dias, ao meio, confiante. O Rosmaninho fechou o rosto obstinado. Atrás, uma jovem insinuante sorri num cartaz.

    «Pigarro, Dias e Rosmaninho, os três provincianos que foram desprezados pelos organizadores da prova.»

    «Pigarro, Dias e Rosmaninho, os três provincianos que foram desprezados pelos organizadores da prova.»

    Estávamos os três boquiabertos e eu ainda mais do que o Anastácio e o dr. Carlos Pereira.

    – «Estarem prestes a vir a pé até à Baixa?!» – Dizia eu enquanto nos dirigíamos para o automóvel.

    – «O Rosmaninho, depois de conseguir dificilmente um banho, ter de se limpar à camisola com que correu cheia de pó e suor?!» – Interrogava-se o Anastácio.

    – «E em cima disto ainda houve uma alma caridosa que os aconselhou a não protestarem, porque então não seriam convidados para a volta do próximo ano!» – Espantou-se o dr. Carlos Pereira. – «São gratas as recordações que lhe deixou a Volta a Portugal, não haja dúvidas. Livra!»

    E dando mais dois passos, pôs a mão no puxador da porta e concluiu:

    – «Bem disse o João Francisco: Aquilo é tudo uma piratagem!»

    Entrámos ao mesmo tempo, mas o enorme carro mal oscilou. Ficámos em silêncio. E eu acabei por me esquecer de perguntar quem era o João Francisco.

     
  • nunorosmaninho 09:32 on 10/01/2014 Permalink | Responder  

    Um estranho telefonema 

    Ainda há pouco, depois de almoçar, estando a caminhar nas imediações vetustas da Praça do Peixe, vi no relógio que dispunha de uma hora desocupada. Se o Anastácio fosse diligente, daria para ajustar as contas que faltam na Volta a Portugal de 1933. Nesses tempos, a vila de Anadia dispunha de uma dúzia de telefones. Liguei para o posto público. Atendeu uma senhora mais cerimoniosa do que uma locutora televisiva nos anos cinquenta. Não percebi nada do que ela disse, ela entendeu o mesmo de mim e assim dei por perdida a ideia de regressar ao Joaquim Rosmaninho. Prossegui pelo canal principal e foi já a chegar à ponte-rotunda que vislumbrei o bigode do Anastácio dentro de um magnífico Packard. Desinteressado da curiosidade que estava suscitando, o Anastácio abriu-me a porta do carro e convidou-me a entrar.

                – Aqui estou eu. Disseram-me que tinha ligado.

    Entrei, pasmado com o inesperado de tudo. Os mistérios do tempo são insondáveis. E perguntei-lhe se dava para irmos a esse Setembro que nunca mais acaba.

    – O sr. Escrivão manda. – E ajeitou o boné sobre os olhos. – Andei a fazer umas investigações. O que me diz a uma entrevista com o Joaquim Rosmaninho?

    – Ó amigo Anastácio, isso é possível?!

    – Deixe comigo. Ainda o apanhamos em Lisboa, no termo da última etapa.

     
  • nunorosmaninho 16:19 on 07/01/2014 Permalink | Responder  

    Ensaio sobre a desigualdade dos homens – Cantanhede, 5 de Janeiro de 2014 

    Os dias continuam chuvosos, mas não assim a manhã de domingo. No interior abrigado da pastelaria Nova Cidade chegou-se a ver o sol durante dois momentos. É verdade que a estrada estava molhada, tanto que o Escrivão se aprimorou a lavar, secar e polir a bicicleta quando chegou a casa. Nada impedia, contudo, a circulação biciclística. Porque faltou então o Lenhador? Terá tosse? Chuva não foi certamente, vento também não e o frio não bateu assim como há semanas. Que querem que conclua? Que deduzem os senhores leitores? Agora, observem a outra falta: a do Informático. «Porque não veio?» – Perguntou o Escrivão. «Está adoentado.» – Informou o Periglicófilo. E todos lamentaram esse facto indiscutido. Num caso, a dúvida que nasce da relutância; no outro, a convicção que vem da inteireza de ânimo. E assim se manifesta a desigualdade entre os homens das Viagens Cíclicas. Quem é o responsável pela situação? Aquele que está sempre presente ou aquele que costuma faltar? O ano de 2014 abriu sob o efeito da época natalícia. Que o diga, por todos, o Físico, que soube tirar das férias o descanso e bom trato. O Homem da Chave Perdida garante que não anda a treinar durante a semana e que toda a forma resulta apenas da ida a Fátima. Não sei se se referia à distância feita ou a um milagre. O Periglicófilo tenta encarar com tranquilidade os quase seis mil quilómetros que se propõe realizar nos próximos doze meses. Assim a chuva o ajude!

     
  • nunorosmaninho 17:19 on 02/01/2014 Permalink | Responder  

    Afinal, o Escrivão e o Anastácio ouvem a história das primeiras dez etapas da Volta a Portugal de 1933 

                As viagens do Anastácio são dignas de maravilhamento. Hoje, saí de casa com uma chuva impiedosa e cheguei aos dias claros de 26 de Agosto e 2 de Setembro de 1933. Passámos pela Curia à hora da sesta. As termas dormiam o sono profundo das tardes de estio. Quando nos apeámos em frente da redacção do jornal A ideia Livre, foi preciso tirar à pressa gabões, casacos, camisolas e camisas. As pessoas, encaloradas, caminhando devagar pelas sombras, pararam para ver o espectáculo.

                – Está frio, hem? – Casquinou o ourives, que assomou à porta por causa do alvoroço.

    Não tendo o que lhe responder, atravessámos a rua e apresentámo-nos ao balcão do estabelecimento tipográfico. Fomos recebidos pelo já nosso conhecido director, o dr. Carlos Pereira, que nos conduziu ao gabinete onde estivemos na primeira visita.

    – Mas quantos são hoje? – Perguntei ao Anastácio enquanto o nosso anfitrião dava instruções aos tipógrafos. Tinha olhado para o calendário e visto uma coisa difícil de descrever. O calendário parecia em movimento, saltando do dia 26 para o dia 2, de Agosto para Setembro.

    – Olhe que não sei. Parece-me que, em vez de irmos para o fim da volta, fomos ter ao princípio.

    – Ora esta!

    O dr. Carlos Pereira convidou-nos a sentar e fez o mesmo. Puxou a cadeira de braços para a frente.

    – Sejam bem-vindos de novo!

    – Temos andado impacientes por saber como acabou a Volta a Portugal, sobretudo por causa do Joaquim Rosmaninho. Saiba que é meu tio-avô. Recordo-me bem dele mas, por mais que pergunte, ninguém me sabe dizer nada sobre a sua carreira. A única coisa que ouço são observações bem-humoradas e às vezes até trocistas.

    – Isso é que não pode ser! O Joaquim Rosmaninho é um atleta amador de grande categoria.

    – Mas os poucos bairradinos do século XXI que se lembram dele só guardam o facto inverosímil de ter ganho peso durante a Volta e de os colegas o terem deixado passar em primeiro lugar na etapa que atravessou a Bairrada.

    – Muito injusto, meu caro Escrivão, muito injusto. Nesse caso, o melhor é voltarmos ao princípio. Quando o meu amigo cá esteve, só lhe dei conta das etapas onze a dezasseis.

    – Pois assim seja. – Respondi, pronto a tomar o fio da Volta a Portugal logo à saída de Lisboa.

    O dr. Carlos Pereira preparou-se mentalmente para ser metódico. E conseguiu.

    – A Volta a Portugal não é uma prova fácil. Digo-lhe eu. O pelotão inicial era constituído por 43 ciclistas. Desses, metade já desistiu. O Joaquim Rosmaninho enverga a camisola do Anadia Futebol Club e isso em parte justifica o interesse do público desta vila. «Todos os dias à noite, na cabine 2 da Pensão Central, estaciona grande número de pessoas, que esperam as notícias que são fornecidas diariamente para o placard de O Desportivo afixado na sede do Anadia F. Club.»

    – Realmente, já tinha percebido esse entusiasmo pela maneira como descreveu a passagem dos ciclistas por Anadia.

    – Na primeira etapa, Lisboa-Santarém, na distância de 72 quilómetros, os ciclistas foram muito prejudicados pelas nuvens de poeira levantadas pelos automobilistas, motociclistas e ciclistas que os acompanhavam. Esse «aluvião de carros e carrinhos» provocou quedas e desistências e até uma clavícula fracturada. O Joaquim Rosmaninho chegou em 8.º lugar. Na segunda etapa, de Santarém a Sines, na distância de 188,5 quilómetros, o grande Nicolau teve de desistir com «dores nos rins». O atleta da Mata da Curia chegou em 18.º lugar.

    O Anastácio seguia a descrição com a mesma atenção que eu, e ia cofiando o farto bigode como o leitor sabe, puxando-o do meio da boca até às extremidades, ora para um lado, ora para o outro.

    – Na terceira etapa, entre Sines e Faro (201,7 quilómetros), o Rosmaninho teve alguns furos mas conseguiu chegar em oitavo. Na classificação geral, ia então em 13.º Na quarta etapa, entre Faro e Beja, na distância de 175,1 quilómetros, continuavam em prova 39 ciclistas. O Rosmaninho atrasou-se no início, mas recuperou muito tempo na Serra do Caldeirão e reintegrou-se no pelotão da frente. Chegou em 29.º lugar.

    – E o camisola amarela, quem era?

    – O Trindade arrebatou-a a César Luís na segunda etapa e parece que não a quer largar. Então agora que o Nicolau desistiu, não vejo quem o possa suplantar.

    – No ano passado a rivalidade entre os dois foi memorável. – Acrescentei.

    – Sim, na III Volta a disputa foi enorme. Continuando. Na quinta etapa, entre Beja e Évora, na distância de 86,9 quilómetros, não registei a chegada do Rosmaninho. Na sexta, entre Évora e Portalegre de 125 quilómetros, o Joaquim Rosmaninho «ficou bastante magoado duma queda e sofreu bastantes furos, tendo dois no curto espaço de quatrocentos metros, ocasionando a sua chegada junto com quatro corredores depois do controlo encerrado.»

    – É lamentável tão pouca sorte. – Sentenciou o Anastácio recostando-se na cadeira.

    – As quedas e avarias são muitas por causa da má qualidade das estradas. Tenho pena de não dispor de uma fotografia. Só assim os seus leitores poderiam conceber a dureza destas provas consecutivas. O Rosmaninho ainda não fez um primeiro, segundo ou terceiro lugar, mas tem lutado com grande determinação. É um combativo. Na sétima etapa, Portalegre-Covilhã, 150,4 quilómetros, chegou em 25.º lugar. Na oitava, entre a Covilhã e Viseu, na distância de 122,4 quilómetros, alcançou o 10.º lugar. Na nona, Viseu-Vila Real, de 139,5 quilómetros, ficou em 15.º Mas é um azarento, não há dúvida.

    O ilustre director deste «semanário republicano e defensor dos interesses da Bairrada», disse isto com gravidade e respeito. E levantando uma rima de papéis à sua esquerda, tirou um exemplar de O Século.

    – Não sou apenas eu que o digo. É o país que o reconhece. Ora, ouça o que esreve aqui este jornal nacional.

    E assestando os óculos redondos, leu com excessiva ênfase:

    – «O popular Rosmaninho ia em bom lugar, mas um incidente obrigou-o a um considerável atraso. Nas termas de São Pedro do Sul, o último corredor a passar e a receber as palmas da multidão foi Joaquim Rosmaninho. O seu lugar era bom, mas, perto da localidade, teve um desastre: partiu-se o pedal da sua máquina e isso o forçou, com um enervamento compreensível e desnecessário de relatar, a um atraso grande, em relação ao avanço dos homens do pelotão dianteiro.» Que lhe dizia eu? Este Rosmaninho só não desiste porque é de boa fibra.

    – Realmente… Onde foram buscar as piadas que o diminuem?

    – Isso não lhe sei dizer. Mas é bom que conheçam o que realmente fez nesta Volta de 1933. Na décima etapa, entre Vila Real e Bragança, 128,6 quilómetros, obteve o 15.º lugar. Neste momento, já só restavam 25 corredores, empenhados em cumprir os 2452,2 quilómetros totais da prova. O Rosmaninho ocupava o 21.º lugar na classificação geral individual.

    – Acha isto uma grande prestação? – Perguntei para o espicaçar.

    – Ó meu amigo, o Rosmaninho é um amador, corre sozinho, sem equipa. Por isso, «lá anda», «empregando a sua máxima energia para honrar as cores do clube da sua terra». A camisola de Anadia não lhe dá melhores bicicletas, nem mais apoios nas quedas e avarias. E infelizmente, como lhe tenho dito, «tem sido vítima de muitas contrariedades que o desanimam bastante e o impedem de obter melhores classificações». Veremos se consegue chegar ao fim. Seria uma grande vitória!

    Percebi que era ocasião de dar por finda a visita. Entre a 11.ª e a 16.ª etapas já os nossos leitores sabem o que aconteceu. É preciso regressar em meados de Setembro para conhecer o fim desta aventurosa prova. Cá fora, ainda fomos recebidos com risos por causa dos agasalhos com que nos apresentámos nesta tarde de Verão. Mas bem sabíamos que assim que retornássemos a 2014 de todos precisaríamos, não pelo frio, que nem é muito, mas pela chuva que não cessa, como todos os leitores podem constatar saindo da frente do computador e dirigindo-se à janela, como Holmes no primeiro andar de Baker Street.

     
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