As viagens do Anastácio são dignas de maravilhamento. Hoje, saí de casa com uma chuva impiedosa e cheguei aos dias claros de 26 de Agosto e 2 de Setembro de 1933. Passámos pela Curia à hora da sesta. As termas dormiam o sono profundo das tardes de estio. Quando nos apeámos em frente da redacção do jornal A ideia Livre, foi preciso tirar à pressa gabões, casacos, camisolas e camisas. As pessoas, encaloradas, caminhando devagar pelas sombras, pararam para ver o espectáculo.
– Está frio, hem? – Casquinou o ourives, que assomou à porta por causa do alvoroço.
Não tendo o que lhe responder, atravessámos a rua e apresentámo-nos ao balcão do estabelecimento tipográfico. Fomos recebidos pelo já nosso conhecido director, o dr. Carlos Pereira, que nos conduziu ao gabinete onde estivemos na primeira visita.
– Mas quantos são hoje? – Perguntei ao Anastácio enquanto o nosso anfitrião dava instruções aos tipógrafos. Tinha olhado para o calendário e visto uma coisa difícil de descrever. O calendário parecia em movimento, saltando do dia 26 para o dia 2, de Agosto para Setembro.
– Olhe que não sei. Parece-me que, em vez de irmos para o fim da volta, fomos ter ao princípio.
– Ora esta!
O dr. Carlos Pereira convidou-nos a sentar e fez o mesmo. Puxou a cadeira de braços para a frente.
– Sejam bem-vindos de novo!
– Temos andado impacientes por saber como acabou a Volta a Portugal, sobretudo por causa do Joaquim Rosmaninho. Saiba que é meu tio-avô. Recordo-me bem dele mas, por mais que pergunte, ninguém me sabe dizer nada sobre a sua carreira. A única coisa que ouço são observações bem-humoradas e às vezes até trocistas.
– Isso é que não pode ser! O Joaquim Rosmaninho é um atleta amador de grande categoria.
– Mas os poucos bairradinos do século XXI que se lembram dele só guardam o facto inverosímil de ter ganho peso durante a Volta e de os colegas o terem deixado passar em primeiro lugar na etapa que atravessou a Bairrada.
– Muito injusto, meu caro Escrivão, muito injusto. Nesse caso, o melhor é voltarmos ao princípio. Quando o meu amigo cá esteve, só lhe dei conta das etapas onze a dezasseis.
– Pois assim seja. – Respondi, pronto a tomar o fio da Volta a Portugal logo à saída de Lisboa.
O dr. Carlos Pereira preparou-se mentalmente para ser metódico. E conseguiu.
– A Volta a Portugal não é uma prova fácil. Digo-lhe eu. O pelotão inicial era constituído por 43 ciclistas. Desses, metade já desistiu. O Joaquim Rosmaninho enverga a camisola do Anadia Futebol Club e isso em parte justifica o interesse do público desta vila. «Todos os dias à noite, na cabine 2 da Pensão Central, estaciona grande número de pessoas, que esperam as notícias que são fornecidas diariamente para o placard de O Desportivo afixado na sede do Anadia F. Club.»
– Realmente, já tinha percebido esse entusiasmo pela maneira como descreveu a passagem dos ciclistas por Anadia.
– Na primeira etapa, Lisboa-Santarém, na distância de 72 quilómetros, os ciclistas foram muito prejudicados pelas nuvens de poeira levantadas pelos automobilistas, motociclistas e ciclistas que os acompanhavam. Esse «aluvião de carros e carrinhos» provocou quedas e desistências e até uma clavícula fracturada. O Joaquim Rosmaninho chegou em 8.º lugar. Na segunda etapa, de Santarém a Sines, na distância de 188,5 quilómetros, o grande Nicolau teve de desistir com «dores nos rins». O atleta da Mata da Curia chegou em 18.º lugar.
O Anastácio seguia a descrição com a mesma atenção que eu, e ia cofiando o farto bigode como o leitor sabe, puxando-o do meio da boca até às extremidades, ora para um lado, ora para o outro.
– Na terceira etapa, entre Sines e Faro (201,7 quilómetros), o Rosmaninho teve alguns furos mas conseguiu chegar em oitavo. Na classificação geral, ia então em 13.º Na quarta etapa, entre Faro e Beja, na distância de 175,1 quilómetros, continuavam em prova 39 ciclistas. O Rosmaninho atrasou-se no início, mas recuperou muito tempo na Serra do Caldeirão e reintegrou-se no pelotão da frente. Chegou em 29.º lugar.
– E o camisola amarela, quem era?
– O Trindade arrebatou-a a César Luís na segunda etapa e parece que não a quer largar. Então agora que o Nicolau desistiu, não vejo quem o possa suplantar.
– No ano passado a rivalidade entre os dois foi memorável. – Acrescentei.
– Sim, na III Volta a disputa foi enorme. Continuando. Na quinta etapa, entre Beja e Évora, na distância de 86,9 quilómetros, não registei a chegada do Rosmaninho. Na sexta, entre Évora e Portalegre de 125 quilómetros, o Joaquim Rosmaninho «ficou bastante magoado duma queda e sofreu bastantes furos, tendo dois no curto espaço de quatrocentos metros, ocasionando a sua chegada junto com quatro corredores depois do controlo encerrado.»
– É lamentável tão pouca sorte. – Sentenciou o Anastácio recostando-se na cadeira.
– As quedas e avarias são muitas por causa da má qualidade das estradas. Tenho pena de não dispor de uma fotografia. Só assim os seus leitores poderiam conceber a dureza destas provas consecutivas. O Rosmaninho ainda não fez um primeiro, segundo ou terceiro lugar, mas tem lutado com grande determinação. É um combativo. Na sétima etapa, Portalegre-Covilhã, 150,4 quilómetros, chegou em 25.º lugar. Na oitava, entre a Covilhã e Viseu, na distância de 122,4 quilómetros, alcançou o 10.º lugar. Na nona, Viseu-Vila Real, de 139,5 quilómetros, ficou em 15.º Mas é um azarento, não há dúvida.
O ilustre director deste «semanário republicano e defensor dos interesses da Bairrada», disse isto com gravidade e respeito. E levantando uma rima de papéis à sua esquerda, tirou um exemplar de O Século.
– Não sou apenas eu que o digo. É o país que o reconhece. Ora, ouça o que esreve aqui este jornal nacional.
E assestando os óculos redondos, leu com excessiva ênfase:
– «O popular Rosmaninho ia em bom lugar, mas um incidente obrigou-o a um considerável atraso. Nas termas de São Pedro do Sul, o último corredor a passar e a receber as palmas da multidão foi Joaquim Rosmaninho. O seu lugar era bom, mas, perto da localidade, teve um desastre: partiu-se o pedal da sua máquina e isso o forçou, com um enervamento compreensível e desnecessário de relatar, a um atraso grande, em relação ao avanço dos homens do pelotão dianteiro.» Que lhe dizia eu? Este Rosmaninho só não desiste porque é de boa fibra.
– Realmente… Onde foram buscar as piadas que o diminuem?
– Isso não lhe sei dizer. Mas é bom que conheçam o que realmente fez nesta Volta de 1933. Na décima etapa, entre Vila Real e Bragança, 128,6 quilómetros, obteve o 15.º lugar. Neste momento, já só restavam 25 corredores, empenhados em cumprir os 2452,2 quilómetros totais da prova. O Rosmaninho ocupava o 21.º lugar na classificação geral individual.
– Acha isto uma grande prestação? – Perguntei para o espicaçar.
– Ó meu amigo, o Rosmaninho é um amador, corre sozinho, sem equipa. Por isso, «lá anda», «empregando a sua máxima energia para honrar as cores do clube da sua terra». A camisola de Anadia não lhe dá melhores bicicletas, nem mais apoios nas quedas e avarias. E infelizmente, como lhe tenho dito, «tem sido vítima de muitas contrariedades que o desanimam bastante e o impedem de obter melhores classificações». Veremos se consegue chegar ao fim. Seria uma grande vitória!
Percebi que era ocasião de dar por finda a visita. Entre a 11.ª e a 16.ª etapas já os nossos leitores sabem o que aconteceu. É preciso regressar em meados de Setembro para conhecer o fim desta aventurosa prova. Cá fora, ainda fomos recebidos com risos por causa dos agasalhos com que nos apresentámos nesta tarde de Verão. Mas bem sabíamos que assim que retornássemos a 2014 de todos precisaríamos, não pelo frio, que nem é muito, mas pela chuva que não cessa, como todos os leitores podem constatar saindo da frente do computador e dirigindo-se à janela, como Holmes no primeiro andar de Baker Street.
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