Updates from Maio, 2019 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 16:34 on 31/05/2019 Permalink | Responder  

    Tinha de vir o primeiro que parasse – Moinho do Pisco, 31 de Maio de 2019 

    Trinta e cinco anos a andar de bicicleta, dezenas de milhares de quilómetros percorridos, tantos cães atrás das pernas, centenas de automobilistas zangados, e tinha de vir o primeiro que parasse. Que alegria! Pude enfim saber que pensamentos se agitam nos neurónios dos condutores e lhes impulsionam a mão até ao meio do volante para premir o som cavo com que pretendem menosprezar, instruir e julgar os tristes seres que, ao calor e ao frio, ousam pedalar por estradas que só deviam pertencer aos automóveis. A fúria longamente alimentada por buzinadelas injustas e a dúvida em que alguns me queriam pôr sugerindo que eram avisos de cidadãos prudentes ficaram hoje resolvidos.

    Aconteceu isto, como se deduz da epígrafe, numa viagem ao Moinho do Pisco, esse sítio pacato, onde passa um automóvel de cinco em cinco minutos entre Avelãs de Caminho e Boialvo, e algo mais na rampa. Neste dia quente, que o Informático Motard diz ter chegado aos 38 graus, o esforço foi maior e os resultados inferiores. Vou registando os tempos, antes que os esqueça: 34 minutos.

    Não deve haver uma única viagem em que, para poupar os camionistas ao aborrecimento da espera e diminuir os perigos da ultrapassagem, não facilitemos o trânsito. Agitamos com veemência a mão esquerda para os elucidar da possibilidade de nos passarem nas curvas apertadas. Ainda hoje pratiquei o gesto com um autocarro na Candieira. Pois foi mesmo aqui que, a descer, indo nós a trinta à hora, num troço rectilíneo, de excelente visibilidade, um automobilista ligeiro buzinou, como tantas vezes sucede, com uma intensidade irritada.

    O Informático Motard perguntou, genuinamente intrigado: o que é que foi? E eu, mais expressivo, tirei as mãos do guiador, abri os braços na sua máxima envergadura e, com um aceno desafiador, emiti uma variante da mesma questão: qual é o problema? O condutor ouvir não ouviu, mas ver decerto que viu. Percebi com alegria que as luzes dos travões acendiam, o carro afrouxava e por fim parava. O entusiasmo fez-me acelerar e chegar depressa. Parei em frente do vidro aberto e refiz a dúvida, abrindo outra vez enfaticamente os braços, mais zangado do que antes: qual é o problema?

    Ora bem, vamos raciocinar. Aquele homem, como muitos outros automobilistas, pensa que a estrada é sua. Não pode expulsar os ciclistas, mas aproveita as falhas para os combater. Na sua pobre cabeça, achava que ia dar uma lição. Acreditava que os ciclistas não podem seguir a par. Era esse o rigor legal que pretendia transferir do seu cérebro para o nosso. Não há ciclista que não conheça tal presunção, e por isso não precisei de quase nada para o confrontar com a ignorância. Mandei-o estudar o código. Arranquei na bicicleta, parei ao fim de dois metros, voltei atrás, recapitulei o que lhe dissera no minuto anterior, lembrei-lhe que também eu era automobilista quando não andava de bicicleta. Acho que não lhe cheguei a dizer para ir embora. Mas ele foi, acelerando sempre, até atingir 80 ou 90 quilómetros por hora numa estrada sinalizada para não ser percorrida a mais de cinquenta. Os moralistas são todos iguais.

     
  • nunorosmaninho 15:37 on 31/05/2019 Permalink | Responder  

    Acende-se o rastilho 

    – Sabe qual é o seu problema? – prosseguiu o Anastácio. – Custa-lhe admitir uma denúncia apoiada numa simples fotografia. Eu próprio estou curioso para o ouvir.

    – É um erro lamentável, Anastácio. Não se pode confiar na memória, excepto se for para falar da memória.

    – Parece um político em noite eleitoral: eloquente e distractivo.

    – Enganei-me. Só isso.

    O Anastácio bateu suavemente a porta do automóvel.

    – Bom… Deixe lá isso. Vamos à queima do Judas.

    Nesse instante, o sino começou a tocar, e corremos cem metros para nos acrescentarmos ao muito povo reunido para assistir ao esfrangalhamento do boneco de palha.

    As mulheres ocupavam o anel mais distante. A criançada chegava-se ao perigo tanto quanto os adultos autorizavam. Os meninos realmente pequenos, talvez lembrados dos rebentamentos do ano anterior, refugiavam-se no colo das mães. Os maiores exibiam uma franqueza valente e inconsiderada. O espantalho, espetado num barrote, tinha a carantonha desenhada a carvão, os braços alargados, as pernas pendentes e um escandaloso rastilho cilíndrico logo abaixo do casaco com que o fogueteiro da Lapa, ali dos lados de Sepins, resolvera alindá-lo. Ainda escutámos as invectivas lançadas por chiste ao boneco: tinha uma boa farpela, era mais feio do que um burro, parecia o ti não sei quem, havia de perder o riso, etc. Notámos os risinhos medrosos e os avisos aos petizes. Sai daí, Zé! Olha que estás perto de mais! Queres que eu vá aí buscar-te por uma orelha?

    Era nestes termos que o burburinho se fazia quando rompemos pelo povo e chegámos à fila da frente a tempo de ver o fogueteiro, autorizado pelo padre Manuel de São Marcos, encostar a torcida incandescente ao falo erecto até dele sair uma aspersão de faíscas e um cicio perturbante.

     
  • nunorosmaninho 11:09 on 30/05/2019 Permalink | Responder  

    Chegámos a Tamengos 

    Qualquer pessoa sabe que, entre a Curia e Tamengos, não distam mais de dois quilómetros, que, mesmo por estradas de macadame, como eram as de 1941, se fazem num instante.     Talvez queiram saber como se processou o retorno a esse passado. Não sou capaz de responder. Em primeiro lugar porque, da rotunda ao Espinhal, as coisas estavam quase como estão hoje. Em segundo, porque, a seguir, distraído como fiquei a admirar as diferenças, não me dei conta da viragem no tempo.

    Tomei consciência nítida de que estava na véspera da Páscoa quando contemplei algumas mulheres, dobradas, a limpar com sachos e enxadas as valetas das casas. Eram poucas, talvez menos do que esperava, e o Anastácio explicou-me porquê. Na quinta-feira de tarde e na sexta-feira santa de manhã não se podia trabalhar. A interdição da Igreja tinha uma formulação corrente: «não se pode ir ao horto». Isso não impedia, porém, que as mulheres se dedicassem à limpeza das casas e das testeiras.

    Sem querer, imaginara uma cena do realismo socialista: dezenas de mulheres de preto, alinhadas pelas ruas, enquanto as crianças carregavam os feixes de erva para um pousio. Afinal, tudo era menos vistoso e mais silencioso, tanto na Curia, onde a junta de turismo cuidava do espaço público, como do Espinhal a Tamengos, onde a casa do Aniano e a Quinta dos Cabrais delimitavam com muros a estrada por onde o Anastácio ia conduzindo. Ao chegar ao edifício do século XVII, demolido pela câmara municipal em 2003, vi, mesmo pitosga como sou, que o largo que antecede o adro estava repleto de gente. O Anastácio estacionou ali mesmo, em frente do portão de madeira. Estranhei que o carro ficasse, desnecessariamente, tão longe. O Anastácio respondeu com brusquidão:

    – Eu é que estranho que receba uma mensagem do Vasconcelos e se dê ao desplante de a ignorar.

     
  • nunorosmaninho 16:23 on 29/05/2019 Permalink | Responder  

    Erro crasso 

    Quinta do cabo (Mata), 29 de Maio de 2019.

    Ex.mo Senhor Escrivão,

    Venho por este meio preveni-lo de que se enganou ao pôr no ano de 1943 a construção do muro e a aplicação do portão do rossio de Tamengos. É uma falha lamentável que lhe arruína a reputação de historiador e lhe apouca a de escrevinhador. Como pode V.ª Ex.cia enganar-se numa data que está inscrita numa placa de mármore afixada à entrada? Agradeça-me a emenda. O que pensariam os leitores se, ao chegar a Tamengos, vissem a queima do Judas no meio de saibro, cimento e pedra? Admira-me, aliás, que não lhe tivessem chamado logo à atenção para esse erro clamoroso, indigno de um principiante, quanto mais de um maduro, como se classificou na nota sobre a ida a Tomar? Mais rigor! É o que lhe peço em nome dos leitores, que usaram o silêncio para evitar a humilhação, e de V.ª Ex.cia, que tem a mania de clamar pelo rigor dos factos.

    Siga lá a sua carreira. Admire o rebentamento do boneco empalhado, uma vez que isso lhe agrada. Mas não engane os incautos. Se não tem tempo para estudar, escreva menos.

    De V.ª Ex.cia Cr.do At.o e Obrig.do,

    Vasconcelos, velho homem da Mata

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  • nunorosmaninho 13:09 on 28/05/2019 Permalink | Responder  

    Páteo 42 

    Fiquei convencido, ao curvar para a avenida da estação, que o Anastácio me estava a conduzir numa linha temporal intermitente. Cheguei a 1941 quando entrei no café, permaneci nesse ano até à Curia e regressei a 2019 ao atravessar o corredor formado pelas duas filas de plátanos, tão espessos que não podiam ser senão de agora. O Anastácio explicou o inesperado regresso ao presente com um comentário matreiro:

    – O senhor Escrivão está com um cabelo que devia ser proibido por lei. A sua careca já não admite esse tufo à roda da cabeça.

    Protestei que não era o momento para aparar o cabelo.

    – Pelo contrário. Vamos ali à Mila. Ela trata-lhe das farripas.

    E foi assim, num esplêndido Packard Super 8, que, em frente do Palace Hotel, saímos à direita e estacionámos. Ao circundar o edifício para aceder à barbearia Páteo 42, fiquei com a certeza de que estava em 2019. O muro ameado do parque termal permanecia com o rombo provocado pela queda de um grande eucalipto no vendaval do Inverno passado.

    O corte de cabelo decorreu como é costume, com clientes a entrar para comprar o jornal, ler e conversar. A Mila pôs-me a gola de papel que, antes de ser dobrada, me lembra a dos padres. Depois, fiz graça com o cabelo que desaparece de um sítio, onde faz falta, e aparece noutro, onde está a mais. Trocámos impressões sobre o seguinte assunto: quão mal têm de estar as termas para que um muro permaneça danificado no centro da Curia durante mais de meio ano? Quando a Mila ajeitou o espelho na nuca, abstive-me de grandes considerações finais por não lobrigar bem o que lá se encontrava e estar certo do bom trabalho. Quando chegou o momento de pagar, fui surpreendido com um saco que continha um troféu velocipédico, talvez um prémio de carreira. Representa um ciclista enérgico e destina-se à biblioteca-café, onde ornará a prateleira das coisas de bicicleta. Agradeci muito à Mila e saí.

    O Anastácio ficara no parque de estacionamento, se é que não fora dizer duas larachas ao cafezinho. Aprovou o corte de cabelo, assentindo ao ver-me as orelhas libertas e as patilhas mais curtas. E apontou-me para as mãos:

    – Recebeu um prémio? Sim, senhor! Ora mostre lá.

    Mirou-o com interesse e devolveu-mo.

    – Mas olhe que tem mais qualquer coisa no saco.

    Meti a mão, duvidoso, e encontrei um bilhete em papel grosso, antigo, dobrado, com meia dúzia de linhas escritas a tinta preta, numa letra que bem conhecia. Começava assim: «Ex.mo Senhor Escrivão.» Era do senhor Vasconcelos.

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  • nunorosmaninho 12:36 on 27/05/2019 Permalink | Responder  

    Quarenta e três dias – Moinho do Pisco, 24 de Maio de 2019 

    ~          Tão certa é a falta de tempo como a vontade dos homens. A primeira desliga-nos da estrada, a segunda pôs-nos no Moinho do Pisco oitenta e quatro dias depois da última incursão em grupo. Calhou ser num dia ventoso, que não prejudicou a subida mas sacudiu a bicicleta nas velocidades mais altas do regresso. Demorámos trinta e três minutos. O plural inclui o Informático Motard. Passámos o cume e fomos tomar um café ao estabelecimento que fica logo depois, à esquerda, quando ainda não se vê povoação alguma. Estanciámos na mesa da esplanada, no sossego da serra, a resmungar com coisas que nos arreliam. Ficou decidido voltar ao Moinho do Pisco na próxima sexta-feira. É inútil lembrar que a primeira investida na serra da Estrela, que será pelo esplêndido vale do Zêzere, acontecerá no dia 6 de Julho. Daqui a quarenta e três dias.

     
  • nunorosmaninho 16:54 on 25/05/2019 Permalink | Responder  

    Cinco homens de bicicleta – Tomar, 18 de Maio de 2019 

    Quando cinco homens maduros se juntam para andar de bicicleta, é conveniente que não andem tão pouco que sejam ridículos, nem tanto que pareçam querer ser jovens. Este dilema não se resolve. O que quer que eles façam será entendido com malícia por quem observa e julga. A mim, que me cabe narrar os acontecimentos, pesa-me a responsabilidade desse equilíbrio tão instável. Estávamos já em Tomar quando uma sucessão de telefonemas me demonstrou a preocupação em que deixei os meus pais. Estacionara o automóvel junto da casa sem lhes dizer para onde ia, e eles, sabendo que as viagens costumam terminar ao almoço, recearam a demora. No dia seguinte, à refeição, o meu pai perguntou aos presentes, creio que acusando:

    – Já viram a facilidade com que eles agarram na bicicleta e vão a Tomar?! A Tomar! Assim, sem mais nem menos…

    Aos oitenta e nove anos, estas viagens parecem-lhe um capricho, talvez uma tolice. Não é o único a pensar assim. Talvez pertença à maioria. As minhas explicações foram inúteis:

    – Mas nós não fomos e viemos de bicicleta. Nós fomos de bicicleta até Tomar, viemos de comboio até Coimbra e daqui outra vez de bicicleta para casa.

    O meu pai ignorou-me:

    – Vejam lá! Até Tomar…

    E é com o peso da estranheza que, cumprido este antelóquio, vou contar o que se passou. Nos cento e quarenta quilómetros de jornada aconteceram poucas coisas, como é habitual. Juntei-me ao Periglicófilo e ao Físico em território de Aguim, na estrada nacional, pela qual prosseguimos até à Mealhada, onde nos esperavam o Vendedor e o Peninha. Passava pouco das oito da manhã.

    Há dois anos, na ciclovia do Dão, o Vendedor, sportinguista, admitiu que só não usava uma camisola do Benfica porque ninguém lha oferecia. O Informático Motard e eu deliberámos dissipar esse problema. E tão bem o fizemos que, embora demorando dois anos, coincidimos a dádiva com o dia em que o Benfica ganhou o trigésimo sétimo título de campeão nacional de futebol. Houve alguma malevolência nisto. O Informático Motard, não podendo ir a Tomar, foi de propósito à Mealhada para que a cerimónia se cumprisse. Esperávamos que o Vendedor retirasse a camisola do Sporting que levava vestida e a substituísse pelo vermelho do Benfica. Mas, vendo bem, isso seria um abuso e, neste dia, quase uma traição. A troca não se fez. Virá porém um domingo, em breve, no qual o Vendedor se apresentará benfiquista. Se o mundo fosse harmonioso, este notável gesto de desportivismo devia ser seguido, ainda que a título efémero, por um benfiquista vestido de verde. O Periglicófilo fez a fotografia que perpetua o cumprimento da promessa.

    A jornada foi vigorosa. O Vendedor continua a treinar à quarta-feira. O Físico já andou 1800 quilómetros desde Janeiro. O Periglicófilo está mais cuidadoso com as pulsações. O Peninha, tal como o cognome indica, passa por cima de tudo com a maior leveza. E eu, tendo interrompido as incursões no Moinho do Pisco, vou praticando no ginásio coisas que cansam.

    Para escapar ao trânsito de Coimbra, enveredámos por Sargento-Mor. A linha azul inscrita no asfalto, que serve para orientar os peregrinos de Fátima, levou-nos à estação ferroviária de Coimbra B. Prosseguimos para Cernache e sempre em frente, com uma única paragem, até à ponte sobre o Nabão, onde procedemos a um retrato de grupo. No restaurante, entretivemo-nos a comentar a viagem, a frescura do dia, o cão que roía um pau, as donas do cão, a possibilidade de não termos lugar no comboio, a impossibilidade de fazermos duzentos e trinta quilómetros num dia, enfim, mil coisas, das quais apenas me recordo de quatro.

    Felizmente, tivemos lugar no comboio que nos levou à Lamarosa e, outra vez sem dificuldade, no que seguiu para Coimbra. Os revisores apresentaram-se com a cordialidade que faltou àqueles que nos irritaram há dois anos. Procurem algures, não sei onde, essa nota. A massa ingente das viagens cíclicas talvez já reclame a criação de pastas temáticas com os seguintes títulos: Cantanhede e Portomar, Dão, Buçaco, Costa Nova e Torreira, Caramulo, Estrela, Figueira da Foz e Tomar.

    Os ciclistas são, de seu natural, ruidosos, mesmo no comboio. Não estou ciente de tudo o que aconteceu porque adormeci. Isso costuma ser uma ocasião favorável para fotografias embaraçosas. Não sei se os colegas aproveitaram.

    Apeámo-nos em Coimbra B e, faltando hora e meia para o comboio que nos poderia levar à Curia, preferimos retomar as bicicletas. A decisão demorou dez minutos, durante os quais verificámos os horários. O Periglicófilo foi ao bar. Eu continuei a comer pão, banana e maçã. Todos pudemos admirar quem estava. Reparei numa grande bandeira do Partido Livre. Outros viram outras coisas. Por fim, desandámos pela linha azul. As duas subidas, feitas alegremente pelo Peninha, levaram o Físico a declarar que na manhã seguinte não participaria na viagem dominical.

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  • nunorosmaninho 21:36 on 24/05/2019 Permalink | Responder  

    Motivos pessoais 

    A pergunta do Anastácio obrigou-me a meditar. O que espero da queima do Judas? Respondi-lhe: que rebente! O bigodaço agitou-se num sorriso.

    – Ora! Deixe-se de histórias. Espera o quê?

    Não tencionava expor os motivos, mas a sua amizade foi naquele instante um impulso que me fez falar.

    – Não assisto à queima do Judas de Tamengos há quinze anos. E temo não voltar a ver. Em 2019, o costume está moribundo.

    – Só isso?

    – Dizem-me que a queima do Judas se fazia fora do rossio, mas isso não é rigoroso porque o dentro e fora só se definiu em 1943, quando se fizeram os muros e se instalou o portão, que nunca vi fechado, excepto quando o vento ou a brincadeira das crianças lhe fazia ranger os gonzos.

    – E então?

    – A queima do Judas praticava-se no sítio da actual bomba de água, que neste tempo estava no meio do largo exterior ao adro, em frente de umas casinhas baixas onde o meu pai haveria de se instalar com uma mercearia em 1947.

    – Compreendo.

    – Ora, em 1941, a casa alta que encosta à bomba actual ainda não era dos meus pais, crianças pequenas, mas haveria de ser a minha maternidade e o meu berço.

    – Ena!

    – Naquela bomba enchi, com orgulho e à custa de muito esforço a dar à manivela, o primeiro cântaro de almude, que pertencia à ti Rosa do Pedro.

    – Ninguém sabe quem é a ti Rosa do Pedro.

    – Não tenho culpa. Tu é que perguntaste o que vamos ver.

    – Acha que o seu pai vai presenciar o rebentamento do Judas? Afinal, ele vive a dez metros do local.

    Achei graça à referência.

    – Em 1941… Em 2019, mora a um! Vai lá estar, sim senhor. E o irmão Lúcio também.

     
  • nunorosmaninho 10:52 on 23/05/2019 Permalink | Responder  

    Vamos a Tamengos 

    O automóvel do Anastácio era, como alguns leitores antigos sabem, um magnífico Packard Super 8 de 1931, cor de mel, estofos no mesmo tom e botões brancos como marfim no tablier. Mantê-lo resplandecente em estradas macadamizadas era uma tarefa diária e inglória, que o Anastácio realizava com teimosia sem igual. Os estribos destes veículos primevos não eram apenas um apoio: funcionavam, para mim, como um tapete onde demorava os sapatos na esperança de abolir a poeira da sola. Foi o que experimentei, com discrição, depois de atravessar a praça do município e olhar, em sinal de cumprimento, o busto do estadista José Luciano de Castro, conhecido em vida como primeiro-ministro de Portugal e, na troça política, talvez injustamente, como o bacoco.

    – Viu quem estava no café? O padre Abel Condesso, Nem a Páscoa lhe diminui a acção política.

    – É um fascista.

    – Fascista de Rolão Preto. Salazar parece-lhe condescendente demais.

    – Os tempos estão para fascistas e germanófilos. Quem lhes quiser resistir tem de se preparar para a prisão ou, como fez Álvaro Cunhal há meses, para a clandestinidade.

    O Anastácio não respondeu a isto. Conduzia o seu belo automóvel com o desvelo de um pai. Passou por trás de José Luciano de Castro, deixou à direita a loja de ferragens e artigos domésticos conhecida por Flor da Bairrada e encaminhou-se para a ladeira rectilínea onde, em tempos, disputei com ele uma subida apressada de bicicleta para ir à Mata entrevistar Joaquim Rosmaninho, que acabara de participar na Volta a Portugal.

    – Diz o senhor Escrivão que há boas corridas em 1941.

    – Foi o que ouvi. O II Circuito da Bairrada, em Julho. O Grande Prémio de Anadia, no princípio de Agosto. E a corrida no parque da Curia, em meados de Setembro. Vês alguma dificuldade em lá chegarmos?

    – Nenhuma. Melhor ou pior, havemos de as ver.

    Já passávamos no sítio onde se haveria de erguer o colégio nacional, depois a escola secundária e, por fim, uma ruína indecorosa.

    – O que espera encontrar na queima do Judas?

     
  • nunorosmaninho 16:07 on 22/05/2019 Permalink | Responder  

    Reencontrei o Anastácio 

    O Anastácio estava encostado ao balcão. Conversava com o dono do café, que, àquela hora, mal tinha tempo para lhe responder. Era o princípio da tarde de sábado, 12 de Abril de 1941, véspera de Páscoa. Na vila de Anadia e nas aldeias dos arredores, preparava-se com afinco a ressurreição do Senhor. Isso significava limpar as ruas, arrumar as casas, preparar as oferendas ao pároco, confeccionar os folares que haviam de cobrir as mesas e dispor o espírito para um dia festivo que, se tudo corresse bem, acabaria em alegria ruidosa, mais báquica do que pantagruélica.

    – Olha o senhor Escrivão! Pensei que tinha desistido das corridas antigas. Nunca mais precisou de mim…

    – É a pressa, Anastácio, a pressa! Nada se faz com calma. Mas cá estou. Ouvi falar em boas corridas para este ano. E, já agora, queria ver a Páscoa em Tamengos.

    – Deu-lhe para a nostalgia?

    – Não. Estou apenas a documentar-me. – E como o Anastácio permaneceu expectante, rematei: – Quero ver a queima do Judas.

    – Vamos lá, então. No caminho, falamos das corridas.

     
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