Updates from Outubro, 2021 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 13:14 on 31/10/2021 Permalink | Responder  

    Passeios e quedas no veraneio em Forest 

                A bicicleta que os Queirós compraram por volta de 1898 foi levada para Forest, no Seine-et-Marne, em Agosto do ano seguinte, quando a família ali estanciou. «Em Forest», escreve Maria, «tínhamos uma casa cómoda, sem luxo nem pretensões, metida num jardim. Aí andávamos à solta todo o dia, e como tínhamos trazido a nossa bicicleta, dávamos alguns passeios. Havia também perto um bosque, onde variávamos os jogos.»

                Saudosa do pai querido, que tão pouco ia já viver, Maria vê-o ainda, à distância de meio século, a mostrar-lhe os bichos que encontravam no campo, impedindo-os, a ela e aos irmãos, «de lhes fazer mal»; a explicar-lhe «coisas complicadas, ou admirando as nossas habilidades em bicicleta, ou tirando fotografias».      Estando longe da sua sala de trabalho, sentava-se no jardim, a rever provas tipográficas.

                O entusiasmo pela bicicleta não se propagou, ao que sei, a Eça de Queirós. Enfraquecido pela doença, a possibilidade de aprender a andar de bicicleta aos 52 anos era imprudente e inverosímil. Mas não para a esposa, Emília. Os resultados foram resumidos pela filha Maria, nossa guia, em 1946: «Tivemos a ideia infeliz de ensinar a nossa Mãe a andar de bicicleta, e ela magoou-se seriamente num pé, o que a obrigou à imobilidade durante quase toda a nossa estada em Forest.»

                Não sei se foi aqui que Eça de Queirós, com a sua larguíssima e genial liberdade literária, imaginou a queda da madame de Todelle no velocípede do padre Ernesto.

     
  • nunorosmaninho 15:54 on 25/10/2021 Permalink | Responder  

                   A bicicleta dos Queirós 

                Em 24 de Agosto de 1897, Eça de Queirós encontrava-se em Paris, instalado no Grand Hotel Terminus enquanto decorriam as obras de renovação da casa para onde havia de se mudar no Outono. Não se esquecera da promessa aos filhos: «Em quanto a bicicleta vou amanhã também, se Deus quiser, tratar de saber preços e condições.»

                No dia seguinte, o tempo tornou-se «abominável». «Frio e chuveiros grossos.» O escritor deve ter ido a alguma loja, onde o informaram sobre os requisitos a ter em conta. «Para se comprar a bicicleta é necessário a medida de l’entrejambe – isto é, a altura da perna desdeo que pudicamente se chama a “verguilha” até ao pé, à sola do pé. Manda essas medidas», pede à esposa, «para o caso em que eu ainda cá esteja na sexta-feira.»

                Passou quase um ano. Na Primavera de 1898, ainda não havia bicicleta em casa da família Queirós, mas os amigos Eduardo Prado e Sousa Rosa levavam as crianças «a passear e almoçar ao Palais du Cycle, onde o Prado aprendia a andar de bicicleta e onde nós», lembra Maria, «dávamos ao pedal com delírio». Nesse tempo, a fotografia apossara-se do gosto da família e dos amigos. Maria lembra-se de uma, no jardim de casa, em que está «o Rosa e a célebre bicicleta e a filhinha!»

                Em Fevereiro de 1899, no meio da revisão de provas de A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós enterneceu-se ao ler a carta em que o filho Zezé «conta as suas aventuras com a polícia». Eça de Queirós estava em Portugal, onde, diz, espalhou «a anedota e com succès».  Encanto de pai. Cinquenta anos depois, a irmã Maria evocou o episódio, que se resumiu, «afinal, a pouca coisa».

                «Tendo nós, José eu, saído de bicicleta com o Charles, tropecei no trottoir e um polícia autoritário quis-nos mener au poste. Protesto indignado e recusa enérgica do Charles, que lançou, em desafio, o nome “Cônsul de Portugal”. Esse título abaixou consideravelmente a arrogância do agente que se limitou a tomar os nossos nomes.»

                Maria prossegue a rememoração:

                «Continuámos divertidos e três tranquillement o nosso passeio, e Charles encontrando outro polícia, contou-lhe l’affaire, esse sorrindo, atribuindo-o a zelo demasiado. Nous les appelons des nouchards, concluía o Zezé.»

                Por aqui se deduz que a família Queirós já dispunha de bicicleta própria.

     
  • nunorosmaninho 09:45 on 21/10/2021 Permalink | Responder  

    Quem nos dera uma bicicleta! 

                A Cidade e as Serras ocupou Eça de Queirós nos últimos sete anos de vida, que terminou em Agosto de 1900. Foi nesse período que a bicicleta entrou em sua casa. Os filhos alegravam-se com essa máquina maravilhosa, que, com um módico de equilíbrio, os levava pelas ruas do jardim, num espanto de velocidade. O pai prometeu-lhes uma.

                Em 13 de Agosto de 1897, na estância de Plombières, onde tentava renovar a sua frágil saúde, notou, pelas cartas da esposa, que os pequenos sentiam com impaciência a demora da compra. «Eu em Paris não a esqueci,» desculpa-se, «mas não tive realmente tempo de a deixar arranjada. Além disso a questão ficara um pouco no “vago”. Só depois de meditares, e eles meditarem, se resolveu a bicicleta; eu posso pedir ao Serra que a estude, a compre e a remeta.»

    As crianças permaneciam, com a mãe, noutro lugar, creio que na praia. Daí vinha a hesitação de Eça de Queirós: «Mas acho que pouco tempo há para a gozarem – e resta sempre a dificuldade de não terem mamã biciclista ou papá biciclista que os acompanhe. Responde sobre o assunto.»

    A carta, tão longa, deu tempo para pensar numa alternativa: «Talvez os pequenos (agora me lembro) preferissem à bicicleta o aluguer de uma charrette e burro, ao mês – com uso dela duas vezes por semana, por exemplo, ou outra vantajosa combinação.» Esquecia, o escritor, que o burro, sendo um animal adorável, se encontra desprovido de pedais onde uma criança, afogueada, exerça a força dos pés, rodas que a façam deslizar e campainha que substitua o seu terno zurro.

    Maria, a mais velha dos filhos, que devia andar pelos nove anos, evocou, meio século depois, a ânsia pela bicicleta. «Uma bicicleta que fosse realmente nossa, que pudéssemos mostrar aos amigos discutindo-lhe os méritos. Mas não tinha chegado a hora, só um pouco mais tarde é que tivemos esse grande gosto.»

     
  • nunorosmaninho 16:59 on 17/10/2021 Permalink | Responder  

    O ministro conde, elegantíssimo, de bicicleta 

                Como dizia atrás, Eça de Queirós imaginou o seu Zé Fernandes, num derradeiro regresso a Paris, a vituperar as bicicletas e os ciclistas. A realidade do escritor era diversa. No final do século XIX, recebia em sua casa, na Avenue du Roule, o ministro conde Sousa Rosa, perfeitamente lembrado pela filha mais velha de Eça de Queirós passados cinquenta anos. Nas suas palavras, Sousa Rosa «aparecia constantemente, elegantíssimo, fosse de bela peliça e chapéu alto, fosse de fato claro, lapela florida, canotier – e de bicicleta!»

                Imagino facilmente a alegria dos filhos de Eça de Queirós. Maria exprime-a nos seguintes termos: «Essa bicicleta, das primeiras de Paris, fazia o nosso entusiasmo; conhecíamos-lhe os menores detalhes, apreciávamos a marca, discutíamos tecnicamente as suas perfeições. Grande e inesquecível amigo!» E, de facto, na carta que enviou à mulher, em 27 de Agosto de 1896, Eça de Queirós refere ter jantado com Sousa Rosa, regressado das termas de Contréxeville «num fervor desordenado pela bicicleta».

                Não se pode tocar na obra de um grande escritor sem que dela brotem mil interpretações possíveis e contraditórias. Enquanto Zé Fernandes recriminava as bicicletas, elas entravam gloriosamente em casa de Eça de Queirós. Meti-me no Dicionário de Eça de Queirós para resolver este paradoxo, e trouxe de lá um excerto da carta enviada à condessa de Sabugosa, em 14 de Janeiro de 1897. Eça de Queirós apresenta-se desencantado com Paris, cada vez mais fabril, mais escura, menos intelectual, mais desgraciosa e grosseira. «Nas ruas», queixa-se, «não se vêem senão homens, de camisola de malha e mulheres de calções, pedalando furiosamente em velocípedes». E prossegue da maneira que se lê em A Cidade e as Serras: «as carruagens já não têm cavalos, são todas automobiles, fazem um barulho horrendo e deitam um cheiro abominável a petróleo».

                Estas impressões são próprias de um homem nascido em 1845. Os jovens viam elegância na bicicleta e no automóvel, animavam-se com a velocidade, só não admitiam a competição desportiva brutal, destituída de cavalheirismo.

     
  • nunorosmaninho 13:57 on 13/10/2021 Permalink | Responder  

    Os dias incertos 

                Estive a meditar no título para o volume das Viagens Cíclicas deste ano de 2021 e cheguei à seguinte epígrafe: Os dias incertos. Chegamos a meados de Outubro em estado de letargia velocipédica. Cada um deu as suas faltas por razões atendíveis: trabalho, chuva, compromissos sociais, indisposição, ausência, etc. A incerteza também se relaciona com os constrangimentos da pandemia e as dúvidas que antecederam as jornadas de Fátima e da serra da Estrela. Por este caminho, o ano termina sem a conquista do Caramulinho.

     
  • nunorosmaninho 12:15 on 13/10/2021 Permalink | Responder  

    A criação e a morte 

                José Régio interrompeu o diário íntimo entre 1941 e 1946. Retomou-o em 22 de Outubro, disposto a fazer dele «alguma coisa». Embora o teatro e o romance fossem a sua mais completa confissão pessoal, retomou o diário para anotar os pesadelos que lhe sobrevieram após a morte da mãe, em Abril.

                Imaginava-se em Vila do Conde, na ourivesaria do pai, que ocupava o rés-do-chão da casa da família. «Meu pai», lembra José Régio, «estava dentro do balcão. Minha mãe tinha chegado, ia sair comigo. Estava vestida de preto, e era de luto por ela própria. Porque ela já tinha morrido uma vez; e agora estava outra vez viva, mas em contínuo perigo. Eu sentia-me feliz por ela, ao menos, ainda estava assim viva depois de ter morrido, disposta a passear comigo como nos bons tempos da sua primeira vida

                José Régio escrevia então, e tinha praticamente concluída, Benilde, ou a Virgem Mãe, que li, assarapantado, em Dezembro de 1982. «Qual é o fio subtil que permite desenlear a trama da obra?», perguntava-me, impressionado com a religiosidade, a demência e o apelo dos sentidos.             Depois de anos a pensar nesta peça, José Régio diz que a compôs a seguir às férias grandes, em dias «de grande exaltação» e devaneio. «Momentos belos, esses (hesito em lhes chamar felizes).»

     
  • nunorosmaninho 09:01 on 11/10/2021 Permalink | Responder  

    O oiro velho dos plátanos 

                Em 1946, o convento gótico de Santa Clara-a-Velha, abandonado no século XVII e destruído pelas inundações do rio Mondego, pela usura do tempo e pelas transformações do uso, era uma ruína inquietante. Cinquenta anos antes, um historiador de arte narrou a sua exploração de barco sob as abóbadas nervuradas.

                Em 9 de Novembro, Belisário Pimenta e Lourenço Chaves de Almeida também lá foram, não sei porquê, nem para quê, nem como. Belisário Pimenta considerou «extraordinário o que ali se vê e ainda o que se não vê, encoberto pelo lodo e pelas águas!» Diz ter sido uma visita que não se esquece e da qual saiu «um tanto ou quanto amodorrado».

    «À saída,» escreveu no diário, «a luz do sol, coada pelo oiro velho dos plátanos, deu nova sensação estranha – também indefinível pelo contraste. E à noite, ainda debaixo da influência de tão grandes impressões, o aparelho de rádio lançou-me aos ouvidos o discurso de Salazar…»

                Até este ponto, ainda hesitava nas impressões de Belisário Pimenta.  Ficara amodorrado pelo pavor das águas estagnadas? Pela tristeza de uma notável obra que desaparecia? E Salazar, o que lhe provocou depois disso?

                «Que diferença, ó Deuses imortais! A miserável política, a subtil ronha jesuítica do tenebroso chefe, sujando a alta e clara emoção de Arte.

                «Que vida esta… que para um prazer há sempre ou um desgosto ou uma impressão de nojo!»

                Sobre Salazar, as ideias de Belisário Pimenta nunca divergem.

     
  • nunorosmaninho 10:08 on 08/10/2021 Permalink | Responder  

    12 Voltas às Gaeiras 

                Em 21 de Outubro de 1946, A Voz Desportiva inseriu uma notícia, enviada por um correspondente ou colhida em algum jornal. Não lhe daria aqui abrigo, tão seca ela é, se não contivesse a memória de uma vitória do Sangalhos Desporto Clube. Alude a «esta vila», que presumo ser a que pertence ao município de Óbidos. Eis:

                «Promovida pela Casa Caseiro, desta Vila, realizou-se a prova de ciclismo 12 Voltas às Gaeiras, no total de 84 quilómetros, que despertou grande entusiasmo. Em Independentes, ficou vencedor Baltazar Rocha, do Sangalhos, seguido de Jorge Pereira, do Sangalhos, e de José Rei, da Marinha Grande. Em Amadores, ganhou Maximiano Rôla.»

                Estando o mês de Outubro prestes a terminar, convenço-me de que o Circuito da Bairrada, que tanto fulgor adquiria nos anos antecedentes, não se realizou em 1946.

     
  • nunorosmaninho 09:30 on 07/10/2021 Permalink | Responder  

    O Verão de Salazar 

                Os Verões de Salazar não passavam sem uma ida à terra natal. O seu biógrafo escreve que o ditador tencionava demorar-se no Vimieiro e, sem perder o contacto com a realidade política, restabelecer-se do estado enfermiço que o tomara.

    Na ONU, a Noruega propôs a instalação do Estado judaico em Angola e a União Soviética opôs-se ao regime português. Salazar recebeu a visita de pessoas próximas, que lhe reportaram as críticas e as vontades inconstantes que punham em perigo o seu poder. Franco Nogueira descreve o seu estado de espírito nos seguintes termos: «o chefe do governo desabafa no plano pessoal: está farto, está saturado, pesa-lhe o fardo do poder: porque não há-de abandoná-lo?» Quer mesmo que lhe responda? Porque não vive sem o poder, e para o seu usufruto criou a repressão. Aquilo são fogachos que ele lança aos colaboradores íntimos para lhes testar a fidelidade.

    Em 9 de Outubro, ainda se encontrava na aldeia a cuidar das vindimas. Na madrugada do dia seguinte, recebeu, por telefone, a notícia de que uma formação militar amotinada saíra do Porto e se dirigia para sul. O pobre primeiro-ministro, em vez de aproveitar a ocasião para se demitir, já que se encontrava derreado pelo peso do poder, correu para Lisboa, num automóvel, para tomar medidas que preservassem o regime e a sua autoridade. Enviou tropas contra os revoltosos. O encontro deu-se na Mealhada. Por causa disso, o episódio ficou conhecido por revolta da Mealhada.

     
  • nunorosmaninho 13:13 on 06/10/2021 Permalink | Responder  

    Os mistérios da árvore podre 

                Por minha culpa, por minha tão grande culpa, deixo-me enredar com uma facilidade excessiva nos mistérios da árvore podre. Perguntei aos meus pais, com 85 e 91 anos de idade, quem a plantou e quando. Há cinco décadas que esta pergunta me traz formulações evasivas. O tempo é vago para quem usa apenas a memória pessoal. No entanto, se 1946 for, para o pai, dezasseis anos de idade, para a mãe dez e para a tia Odete quase isso, então posso inquirir, objetivamente, se João Paulo Freire (Mário) viu mal as árvores do adro de Tamengos, que a nomenclatura nativa designa por Rossio. Quem é que plantou a árvore podre? A tia Odete, paciente, repetiu:

                – Não sei. Ela já era velha quando eu era pequena. Tinha um buraco, e a gente escondia-se lá dentro. Andávamos ao côche-côche e ao quemá-quemá e escondíamo-nos dentro do buraco. Cabia lá uma criança abaixada. Tinha eu 7, 8, 9 anos.

                Assim como registei esta conversa com a tia Odete, fiz o mesmo com os meus pais, mas com tanta imperfeição que a perdi. Antes que ela também desapareça da mente, declaro que ficaram surpresos e indignados com a invisibilidade da árvore podre no relato do jornalista. O que vale mais? Uma página escrita, entre muitas, por alguém alheio ao local, ou uma memória fresquíssima de oito décadas? Opto por esta, que é  firme e reiterada.

                O pai declarou que o orifício na árvore podre teria um metro de altura e cinquenta centímetros de profundidade. A possibilidade de ela ter uma caverna no âmago, onde as crianças se juntavam, é bela e implausível. O buraco, imagino eu, poderia ter sido um episódio do crescimento do tronco, que formava um cone que, em pouca altura, passava da base de cinco metros de diâmetro para o topo de um metro e meio, e daqui para uma copa que a minha visualização de infância faz corresponder a um raio superior a cinco metros.             Em 1946, havia no adro muitas árvores, de que o padre São Marcos dispunha, para a sua lareira, quando elas tombavam. Os pais e a tia não se lembram da alfarrobeira, mas já comiam os pequenos frutos adocicados do dito morangueiro. E não podem admitir a inexistência da árvore podre nesse tempo que era o seu e pelo qual prestam testemunho. Asseveram, como se estivessem a prestar declarações no tribunal, que ela já era grande e velha quando eles próprios eram pequenos. E é nisto que temos de ficar, contra a sugestão de João Paulo Freire (Mário).

     
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