Updates from Junho, 2020 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 11:48 on 29/06/2020 Permalink | Responder  

    Havia outro buraco na berma da estrada – Portomar e Cantanhede, 28 de Junho de 2020 

    Afinal, havia outro buraco na berma da estrada. Coube-me em sorte passar por ele, sentir a violência do impacto e, um segundo depois, escutar o ar a ser rapidamente expelido da roda traseira. Tinha andado três quilómetros e meio. Não passei de Vagos, mas não caí. Faltei ao encontro na esplanada de Portomar, por onde os amigos passaram antes de se dirigirem, a grande velocidade, para Cantanhede, Pena e Cordinhã. Fiquei sem poder explicar ao Informático Ferroviário como é que, treinando eu no plano, subo o Moinho do Pisco em vinte e cinco minutos. E fiquei sem poder escutar as circunstâncias da viagem de domingo passado, que os levou ao dito Moinho do Pisco, a Mortágua e ao Buçaco. Em contrapartida, admirei uma fotografia do Vendedor, sportinguista, com o equipamento do Benfica. Os leitores que chegam desprevenidos a esta nota façam o favor de evitar juízos precipitados. O Vendedor não é um vira-casaca: é um esplêndido exemplo de confiança, harmonia e alteridade.

     
  • nunorosmaninho 20:28 on 26/06/2020 Permalink | Responder  

    Coisas ilusóricas fantasóricas tiradas da mitologia que vem de Morfeu – Moinho do Pisco, 26 de Junho de 2020 

                Se a manhã não tivesse chegado cinzenta, cacimbada, e as estradas não estivessem escorregadias, teria ido ao Moinho do Pisco com o Informático Motard. Mas os automóveis passavam com os limpa pára-brisas ligados, sobretudo em Avelãs de Caminho, e, assim, a sensatez mandou-nos desistir, já eu estava equipado e com a agenda preenchida em Tamengos. Fui a título exploratório. Chuvisco em Oiã, em Avelãs e em Boialvo. Esperei dois minutos, a humidade desapareceu do ar, a estrada manteve-se seca, retirei a bicicleta do carro, esqueci-me das luvas e desci os trezentos metros que antecedem a subida.

                Tinha obtido a receita do Rúben para despachar o Moinho do Pisco em dezassete minutos. Infelizmente, esses breves minutos, nas minhas pernas, eram pura ilusão ou, como diria o Maneco, coisas ilusóricas fantasóricas tiradas da mitologia que vem de Morfeu. Engrenei bem, apesar de tudo, bem para mim, que não peço demais. Muito certo, entre os onze e meio e os doze e meio de velocidade, e, a partir do quarto quilómetro, dos treze para cima, fiquei convencido de ter passado o marco antes dos 25 minutos. Mas o Strava, inclemente, disse-me que os tinha ultrapassado em sete segundos.

                E que coisas são essas, ilusóricas e fantasóricas, de que falava o Maneco? Depois do almoço, a minha mãe explicou-me num vídeo de um minuto e cinquenta e sete segundos, que é também a notícia de um telefonema recente, onde a Nininha é a prima que guarda uma memória vivíssima do Maneco, a Tidade a mãe do Patrocinador e a Custodinha a irmã que herdou a mercearia. No almoço dos mordomos do Senhor, na festa de Nossa Senhora do Ó, em Aguim, referido no telefonema, também estiveram o Leonardo, em representação da aldeia de Horta, e o Angelino, de Tamengos, de quem guardo a memória.

                – A Nininha ligou-lhe? – perguntei.

                E a mãe respondeu:

                – A Nininha ligou-me a perguntar como era a frase que o meu pai dizia, que falava no… quê?… Morfeu. Ela só se lembrava do Morfeu. E queria saber o resto, de que se esqueceu. Já tinha telefonado à minha irmã Custodinha, e ela que não sabia. E então perguntou-me. E eu disse: olha, eu agora também não me lembro. Não me lembrava. Fugiu-me! Ainda há pouco tempo sabia. «Pronto! Então vou ligar à Tidade, a ver se ela sabe.» De repente, lembrou-me. Olha, já me lembrei! O meu pai dizia… Estava a falar com um senhor, chamava-se Mariano, que era parceiro dele da festa do Senhor. E foi lá comer, a Aguim, à Senhora do Ó, e veio com aquela frase e andou naquilo anos e anos a contar a toda a gente. E eu, por acaso, já me tinha quase esquecido. Ele dizia: «Estava lá na conversa…» E ele disse a conversa, mas já não me lembra. «E vai o meu parceiro: Isso são coisas ilusóricas fantasóricas tiradas da mitologia que vem de Morfeu!» Ele achou graça àquilo e contava muitas vezes lá na loja, Contava, contava, até que me ficou cá na memória. Mas quando a Nininha me telefonou, estava a ver que não lhe dizia, mas lá consegui. São coisas ilusóricas fantasóricas tiradas da mitologia que vem  de Morfeu! Pronto. Está dito!

     
  • nunorosmaninho 21:57 on 23/06/2020 Permalink | Responder  

    Martins perde para Rebelo 

    O desporto e a vida fazem-se na presunção de autoconhecimento sobre o valor do ser e da acção. Estas subtilezas ocorrem nas narrativas de ciclismo sob a forma de tenacidade ou inconstância, ousadia ou temor, valia ou irrelevância, vitória ou derrota. Poucas vezes, o redactor ousa falar de vaidade e presunção. Uma dessas raras menções sucedeu após a última prova do campeonato distrital de fundo, que percorreu as estradas entre Lisboa, Merceana, Torres e Ericeira em final de Abril ou início de Maio de 1944. Os 176 quilómetros deram uma vitória brilhante a João Rebelo. José Martins deu luta. Túlio Pereira teve furos e esteve menos bem. A quem assenta o comentário inicial, expendido por Gil Moreira, acerca do excesso de autoconvencimento?

    «São poucos, muito poucos mesmo,» escreve Gil Moreira na revista Stadium de 3 de Maio, «os corredores de bicicleta que têm a verdadeira noção das suas possibilidades. Normalmente, a maioria, quando vence, exagera na análise dos seus atributos, chegando mesmo a diminuir o valor dos adversários. Se são vencidos, raras vezes tomam isso como reflexo da superioridade dos seus companheiros de luta, apresentando, para motivo da derrota, a infelicidade nas provas e as dificuldades que tiveram de vencer, chegando até a considerar-se vítimas de pretensas irregularidades cometidas por aqueles com quem se batem.»

    Algumas vitórias são concludentes e tornam inúteis os subterfúgios dos derrotados. Estava nesse caso, na opinião de Gil Moreira, o triunfo de João Rebelo. O crítico é um admirador de João Rebelo e talvez um defensor dos clubes do sul, como então se dizia. Teria absorvido mal as vitórias dos corredores do Sangalhos? Ou estarei eu a defender o clube da minha terra? Para Gil Moreira, a vitória de João Rebelo, da Iluminante, e o segundo lugar de José Martins, do Sangalhos, exprimem uma hierarquia absoluta de valor. Em termos narrativos, esta asserção foi desenvolvida nos termos que se seguem.

    «Rebelo, que no primeiro terço da corrida teve de mudar duas vezes de máquina, “recolou” sempre com à-vontade surpreendente. Depois, quando ficou sozinho com Martins (e isto deu-se a mais de cinquenta quilómetros da meta) nunca se recusou a entreajudar o homem de Sangalhos, fazendo-o de tal maneira que ninguém conseguiu aguentar-se na “roda” desse endiabrado duo de fugitivos. Mais tarde, ao atacar na rampa de Caneças, fê-lo com tal convicção que Martins teve de ceder, apesar de ter ainda podido “colar-se” por momentos à roda do “iluminante”. E, por último, após haver neutralizado, nos longos quilómetros da descida de Caneças ao Senhor Roubado, a vantagem adquirida por Martins, e ao descer com mais alguns centímetros de “desmultiplicação”, o mesmo Rebelo impôs de tal forma a sua superioridade a subir que, desde o meio de Carriche até à pista, ganhou nada menos de dois minutos ao seu valoroso adversário. Isto diz tudo acerca do comportamento do possante estradista.»

    Gil Moreira pode ter as suas preferências, mas é um analista rigoroso. «Por seu turno,» diz ele, «Martins valorizou-se bastante no segundo terço da prova, enquanto tentava, por sinal com êxito, distanciar João Lourenço, que tinha mudado de máquina.» Aqui, Gil Moreira passa para outro parágrafo. «A sua marcha uniforme, em luta contra a brisa que soprava de frente, desde o alto da Picanceira até às Carvoeiras, deu de facto momentos de grande valia à competição. No entanto, onde Martins mais se valorizou e onde a sua acção chegou mesmo a ser brilhante foi na perseguição feita entre Caneças e Carriche. Neste troço da prova, Martins ganhando terreno a descer e Rebelo a distanciá-lo nas subidas curtas do percurso, a luta tornou-se emotiva e rodeou-se de valor atlético incomparável.» João Rebelo cumpriu os 176 quilómetros em 5 horas, 12 minutos e 11 segundos, e José Martins em 5 horas, 14 minutos e 10 segundos. João Lourenço, do Sporting, foi terceiro. Noé, do Sangalhos, ficou em sétimo, ou seja, penúltimo.

     
  • nunorosmaninho 17:06 on 17/06/2020 Permalink | Responder  

    No meio da estrada havia um buraco – Torreira, 14 de Junho de 2020 

    Na sexta-feira, três dias antes da viagem à Torreira, ocorreu o seguinte diálogo:

    Físico: Acho que haverá boas condições para irmos até à Figueira ou até à Torreira.

    Informático Motard: Amanhã ou domingo? Eu nas dinâmicas aqui em casa preferia domingo.

    Físico: Também preferia domingo.

    Periglicófilo: Eu sugeria a Torreira, para facilitar a vida ao Escrivão e também para aceitar a sugestão do Vendedor de percorrermos os passadiços junto à ria.

    Escrivão: Obrigado. Só posso no domingo.

    Periglicófilo: Está a tendência para domingo, onde o tempo parece melhor. Há o senão de haver mais gente na rua…

    E havia, sobretudo à tarde. Em contrapartida, os buracos na estrada eram os mesmos, às vezes inesperados.

    Físico: No regresso passamos de ferryboat? Quais são os passadiços por onde o Paulinho quer passar?

    Periglicófilo: São a sul de Estarreja. Teríamos de voltar para trás.

    Vendedor: Não sei se posso no domingo. Amanhã confirmo. Nos passadiços, para se andar só mesmo de BTT. As frestas da madeira são muito abertas.

    Informático Motard: Informático Ferroviário, vais?

    Informático Ferroviário: Não dá. Estou de piquete.

    Informático Motard: Torreira sem ferry são quantos quilómetros?

    Periglicófilo: À volta de 130. Curia/Albergaria: 33 quilómetros (menos de 1h30). Albergaria/Torreira: 31 quilómetros (ainda menos, porque é como ir para Tomar e o vento não estará contra). Torreira/Costa Nova: cerca de 50 quilómetros (um pouco mais de duas horas). Costa Nova/Curia (por Ílhavo): cerca de 44 quilómetros (mais duas horas). Total acima dos 150 quilómetros devido ao desvio pela Costa Nova e a não virmos de ferry. Se sairmos do Patrocinador às 9 horas, 9h15 no Modelo e 9h30 em Avelãs, cerca das 10h30 em Albergaria e pouco depois das 12 na Torreira. Isto é apenas um esboço, que poderá ser aperfeiçoado por qualquer um a qualquer momento.

    Vendedor: 8h30 no Patrocinador.

    Periglicófilo: Ok. O nosso Vendedor manda. Tem primazia por ter optado por pedalar connosco. Físico, se preferires, 8h45 no Modelo. Motard, 9 horas em tua casa. Escrivão, cerca das 10 horas no Framboesa 2, em Albergaria-a-Velha. Se souberem de outro local melhor, proponham. Só falei nesse pelas boas condições de controlo sobre os cavalos.

    Escrivão, determinado mas distraído: Muito bem! Lá estarei às 10 na Framboesa com o cavalo à porta. É a Framboesa 1?

    Vendedor: 2. É a única que tem estábulo.

    No domingo, eram 9h54 quando cheguei, fiado no GPS, à Framboesa 2. Logo depois, assomaram os amigos. Ficámos na esplanada a tomar café e a dizer disparates. Seguimos com proficiêsncia até Estarreja e, felizes com a ausência de vento, chegámos à Torreira muito depressa e sem cansaço. Discorremos sobre o local do almoço e, depois de escolhermos, não nos arrependemos da vitela e da carne de porco à portuguesa. Fonos tão bem atendidos que, à saída, a simpática empregada nos ofereceu um cálice de licor Beirão, que só o Informático Motard não sorveu. Como o ferry só zarpava às cinco e meia, decidimos que não íamos a São Jacinto. Assim, podíamos regressar a Estarreja, passar por Aveiro, e comer cabras-cegas na Costa Nova e bolo em Ílhavo. O Periglicófilo fez a fotografia do grupo e pô-la no grupo do WhatsApp.

    Informático Ferroviário: Onde está o Peninha?

    O Periglicófilo respondeu-lhe, em inglês, que não sabia.

    Informático Ferroviário: Bom almoço e bom regresso. Talvez ainda vos apanhe pelo caminho.

    Periglicófilo: Obrigado! Seria bom. O nosso Vendedor está com o vício das cabras da Costa Nova, mas o Escrivão já avisou que a Eugénia tem lá um bolo para nós! A vida está complicada!… Boa volta!

    Às 16h42, estava o Informático Ferroviário em Portomar, de onde enviou a fotografia de um café e um pastel de nata. Acrescentou que merecia duas natas por causa do esforço a que vento o sujeitou. E perguntou quem tinha pagado na Framboesa, uma vez que lhe pertence essa escrituração.

    A essa hora já eu me encontrava em Anadia, junto a uma clínica, sentado numa cadeira, a boca e o nariz encerrados numa máscara, ouvindo funcionárias com uma alegria exuberante no momento de fazerem o teste da Covid.

    Escrivão: Pagou o Vendedor. Infelizmente, o Rui caiu ainda antes de Estarreja. Estamos a ver se lhe fazem uma radiografia ao cotovelo.

    Informático Ferroviário: Mau, espero que sejam apenas umas nódoas negras e nada partido.

    O Periglicófilo saiu pouco depois desta troca de mensagens e respondeu às preocupações.

    Periglicófilo: Por fora não se vê nada, mas dói muito. Pelos vistos, nada de grave e muito menos fractura. Já estou medicado e vai correr tudo bem.

    Neste momento, os quilómetros e as velocidades tinham passado para segundo plano. Mesmo assim, ficou a referência do Físico: 145 quilómetros com uma rapidez média de 23,5 quilómetros por hora.

    O diálogo prosseguiu na segunda-feira.

    Informático Motard: Como está o braço?

    Periglicófilo: Uma segunda opinião confirmou as suspeitas de que ontem o serviço não foi bem feito. Tenho um ossito fracturado e deslocado. Vão imobilizar o braço e amanhã venho à consulta de especialidade, pois não está arredada a hipótese de cirurgia. É uma porrazita chamada tecícula. Pouco maior do que uma moeda.

    Na terça-feira:

    Periglicófilo: Afinal, havia outra. Eram duas fracturas. Felizmente não foi preciso cirurgia. Três semanas de atestado, pelo menos.

    Físico: O importante agora é que melhores rapidamente. Com o braço assim não dá muito jeito para pedalar.

    Periglicófilo: Desequilibra para a direita!

    Havia, como disse, um buraco na estrada.

    20200614-WA0000

     
    • Graça Matos 17:20 on 17/06/2020 Permalink | Responder

      Belíssimo diálogo, belas “bicicletadas” independentes. Pena a queda.
      Rui, só espero que a tua lesão na tacícula seja diferente da minha, bem como os cuidados médicos.
      A minha valeu-me, ao fim de 9 meses, uma cirurgia, seguida, mais tarde, de outras duas e uma incapacidade de quase 26%!

      • nunorosmaninho 19:28 on 17/06/2020 Permalink | Responder

        É preciso cuidado com as coisas pequenas para que não se tornem grandes.

    • Rui Godinho 18:05 on 17/06/2020 Permalink | Responder

      Errei no nome do osso. Chama-se tecícula e desconhecia que o carregava até domingo passado.

      • nunorosmaninho 19:26 on 17/06/2020 Permalink | Responder

        Está a errata feita! Tudo neste blogue deve ser rigoroso e verdadeiro.

    • Rui Godinho 18:06 on 17/06/2020 Permalink | Responder

      Oh bolas! Tacícula!!!

  • nunorosmaninho 15:11 on 11/06/2020 Permalink | Responder  

    A poesia da bicicleta 

    Sou um apreciador da mecânica poética dos Sinais, de Fernando Alves, na rádio TSF. Em 3 de Junho, dia mundial da bicicleta, lembrou este veículo, que corre, ligeira, na poesia portuguesa. Imaginem a voz cava e melódica do jornalista a entrar no assunto com a lembrança de que Steve Jobs quis chamar bicicleta aos seus computadores.  «Aderi tarde ao computador e desisti cedo da bicicleta,» diz Fernando Alves, «tantas as mazelas das inumeráveis quedas, que nem sequer gloriosas.» Teme que seja tarde para «regressar ao pedal, embora saiba que Tolstoi tinha apenas mais um ano do que aqueles que tenho hoje quando decidiu aprender a andar de bicicleta». O autor de Guerra e Paz ia na idade de 67 anos. «Foi isso em 1895», diz Fernando Alves, «e há até, do notável facto, registo fotográfico».

    Não podendo furar as estradas sobre duas rodas, Fernando Alves recomenda ao ouvinte que pedale no computador ou nos livros. Assim, qualquer um encontrará o poema A Bicicleta, de Alexandre O’Neill, no qual uma mulher se queixa do desaparecimento do marido, talvez levado pela polícia do Estado Novo:

    O meu marido

    saiu de casa no dia

    25 de Janeiro. Levava uma bicicleta

    a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro,

    vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,

    blusão cinzento, tipo militar, e calçava

    botas de borracha e tinha chapéu cinzento

    e levava na bicicleta um saco com uma manta

    e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo

    e uma panela de esmalte azul.

    Também podia ter lido o poema O Ciclista:

    O homem que pedala, que ped’alma

    Com o passado a tiracolo,

    Ao ar vivaz abre as narinas:

    Tem o por vir na pedaleira.

    Faz lembrada a fotografia do «grande Fernando Assis Pacheco», que «foi casar de bicicleta» e, ao lado dela, de pé, exibiu um «descomunal manguito ao maralhal». Alude a Julio Cortázar, para quem o conto deve possuir as propriedades da bicicleta em andamento, equilibrada e rápida. Faz presente os conselhos dados aos novos jornalistas de rádio, que deviam ser com a voz aquilo que um bom ciclista é com a bicicleta: um só. «Não deixes de pedalar», aconselha Fernando Alves. «Tenta apanhar a bicicleta do poeta que dá à pata nos pedais para o Verão interior. É a bicicleta de Herberto Hélder.» E declama:

    Lá vai a bicicleta do poeta em direcção

    ao símbolo, por um dia de verão

    exemplar. De pulmões às costas e bico

    no ar, o poeta pernalta dá à pata

    nos pedais. Uma grande memória, os sinais

    dos dias sobrenaturais e a história

    secreta da bicicleta. O símbolo é simples.

    Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais –

    lá vai o poeta em direcção aos seus

    sinais. Dá à pata

    como os outros animais.

     
  • nunorosmaninho 19:05 on 10/06/2020 Permalink | Responder  

    Narração da vitória de José Martins 

    Gil Moreira não apresentou a corrida como um enredo de aventuras, nem José Martins como um herói destemido. Nessa manhã chuvosa de Abril de 1944, cada atleta jogou a sua cartada e, no fim, ganhou o homem do Sangalhos Desporto Clube, o mais regular dos quinze concorrentes. «Até à Azambuja, a lutar com vento de feição,» escreve Gil Moreira, «o que dava aos adversários mais rápidos (Lourenço, Lopes, Mourão e até mesmo Rebelo) acentuada vantagem, Martins empregou-se de tal maneira que pouco ou nada se atrasou em relação ao seu mais perigoso competidor, que era, naquela altura, João Lourenço. E, depois, no regresso a Lisboa, com tanta regularidade pedalou que pôde anular o seu atraso de cinco quilómetros, para passar depois, em Vila Nova da Rainha, já com uma vantagem de 1 m. 20 s. sobre Lourenço e de 1 m. 50 s. sobre Rebelo, concluindo depois a prova sem ser inquietado.»

    A sua não diminuiu a prestação dos outros, conforme explica Gil Moreira: «Se Martins foi o mais regular, Rebelo deve considerar-se o mais valoroso concorrente dos últimos trinta quilómetros. No Carregado, ainda o campeão nacional de 1043 trazia 1 m. 55 s. de atraso em relação a Martins; no entanto, apesar da cadência de marcha deste corredor ser de 105-110 pedaladas por minuto (média de 37 quilómetros), Rebelo conseguiu ganhar ao vencedor, entre a Castanheira e Lisboa, perto de um minuto. Isto diz tudo acerca do seu comportamento na parte final da corrida.»

    Na primeira metade da prova, o «grande homem» foi João Lourenço, que precisou de apenas 1 hora e 16 minutos para cumprir os cinquenta quilómetros entre Lisboa e Azambuja. No regresso, porém, a fadiga e o vento contrário abateram-no e acabou ultrapassado por Martins e Rebelo.

    Resultados finais: 1.º, J. Rebelo, em 2 h. 39 m. 24 s.; 2.º, Rebelo, em 2 h. 40 m. 24 s.; 3.º, Lourenço, em 2 h. 41 m. 42 s.. Túlio Pereira, em quarto lugar, já ficou a mais de sete minutos de Lourenço. David Silva, que também creio do Sangalhos, foi o penúltimo dos catorze que cortaram a meta.

    A revista Stadium deu a José Martins uma justa consagração fotográficas.

    Stadium_S2_N72_19Abr1944_0013

     
  • nunorosmaninho 19:58 on 07/06/2020 Permalink | Responder  

    Bóreas – Praia de Mira e Tocha, 7 de Junho de 2020 

    Na mitologia grega, Bóreas é um deus e um vento. É forte, violento e frio. Hoje, foi apenas constante, veemente e fresco. Levou-me numa correria fácil até ao encontro com os amigos, em Mira, e daqui até à praia e à vila da Tocha. A sua teimosia só se me impôs, verdadeiramente, em Cantanhede, quando o enfrentei, sozinho, durante trinta e cinco quilómetros. O seu sopro batia-me no rosto, abanava a bicicleta e atrasava-me o andamento. Não lhe levo a mal, é a sua natureza. Só tenho a agradecer-lhe o cansaço e o prazer de parar após cem quilómetros de jornada.

    Assim sentem, estou certo, os companheiros de jornada, a saber: Vendedor, Periglicófilo, Peninha, Informático Motard e Físico. Ninguém andou menos de oitenta quilómetros. A paragem fez-se logo em Portomar, ao quilómetro vinte e cinco. A partida ocorreu às oito e meia. O Informático chegou atrasado ao almoço. Pensa-se numa ida à Torreira, a título de passeio e preparação para a serra. Declarei, orgulhoso, ter chegado hoje aos dois mil quilómetros no presente ano. O Físico está próximo. O Periglicófilo e o Informático Motard orçam pelos novecentos. O Vendedor e o Peninha não sabem ou não respondem. O Informático Ferroviário pedalou à tarde e, como o tem feito com regularidade, também deve ir bem. Comeu a nata no Luso.

     
  • nunorosmaninho 11:45 on 03/06/2020 Permalink | Responder  

    José Martins 

    Em Abril de 1944, nos cem quilómetros corridos nos arredores de Lisboa, a vitória de Túlio Pereira deixou na sombra o quarto lugar de José Martins, seu colega na equipa do Sangalhos. É normal. O olhar está treinado para ver o que se destaca. Mas o cronista, que é, como sabem, o antigo corredor Gil Moreira, comentou cada um dos atletas, e, sobre José Martins, hesitou. Todos chegaram fatigados à meta, menos ele, porque nunca quis encabeçar o grupo perseguidor. Passou a meta «relativamente fresco», embora «algo moroso a pedalar». O que se deve concluir disso? «Ou tem treinos demasiadamente longos ou, então, é consequência do abuso de crenques compridos demais quando treina.»

    Não me peçam elucidações. Nada sei de métodos de treino e, ainda menos, de crenques, a que, quando era miúdo, ouvia chamar crencos, assim lembrados quando, por velhice da bicicleta ou quedas, começavam a bater sincopadamente no quadro. Para quem não sabe mesmo o que é um crenque, tenho de dizer que é a haste coroada pelo pedal. Sei, isso sim, que, coisa de uma semana depois, a revista Stadium exibiu a seguinte epígrafe: «Renovando a proeza de Túlio… José Martins conquistou para o Sangalhos D. C., nos 100 quilómetros contra-relógio, a segunda vitória da época.»

    O cronista salientou o mérito da vitória, e os adversários reconheceram que «de facto andou bem». E andou. Fez o percurso Lisboa–Azambuja–Lisboa em 2 horas, 39 minutos e 24 segundos, deixando João Rebelo a um minuto e João Lourenço a 1 minutos e 18 segundos. Gastou menos 16 segundos do que o vencedor de 1943. Túlio Pereira ficou em quarto. E, entre os quinze concorrentes, estavam os melhores ciclistas portugueses.

    A descrição da prova, feita por Gil Moreira, é uma alegria reencontrada. O jornalismo narrativo dos anos vinte e trinta deu-nos maravilhosas descrições das vitórias de Aníbal Carreto, Manuel Alves Pires e Joaquim Rosmaninho. Depois, A Voz Desportiva perdeu esse fulgor e descaiu para as enumerações. Era preciso um novo fôlego, que actualizasse a narração do ciclismo. É o que faz Gil Moreira.

    Stadium_S2_N72_19Abr1944_0011

     
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