Após tantos domingos a contestar a impaciência de certos automobilistas, havia de chegar o dia de encarar o segundo inimigo dos ciclistas: os cães. A aversão aos ciclistas é antiga e tenaz. Os cocheiros viram nas bicicletas a ameaça da concorrência. Os peões ressentiram o estatuto económico. Alguns intelectuais desprezavam-na apenas. Guerra Junqueiro inventou um epigrama admirável: «a bicicleta é o único veículo em que a besta puxa sentada». Nesses refinados tempos, havia quem acirrasse cães contra os ciclistas e atravessasse as ruas com arames. Ora, deu-se hoje o caso de, à falta de cocheiros a buzinar, os cães terem provocado três episódios, um dos quais próprio do século XIX. As coisas passaram-se nos exactos termos em que os vou narrar.
O Lenhador, que já se perdia nas vindimas e nas vinificações, desapareceu nas penumbras de uma reunião política. Coitado! O Rúben, que ganhara a nossa admiração e respeito por pedalar aos treze anos aquilo que se espera aos vinte, regressou à prática do futebol. O Físico, não sei por que faltou. Sei que éramos cinco e que o Telmo já se encontra em boa forma. Deslizámos sem vagar e sem pressa até às natas de Portomar, que estavam dignas de apreço. E deixámo-nos ficar conversando brandamente sobre a ideia de ir na próxima quinta-feira a Fátima. E foi já no regresso que, depois de passarmos por vários cães sensatos, que se aquietam à nossa passagem, se deu o primeiro caso.
A caminho de Sepins, por uma terra que já não sei, apareceu um cão branco, grande, que se afastou mansamente quando nos aproximámos. O Escrivão ia na dianteira, a conversar, e não o viu encetar a corrida que o pôs a um palmo das canelas. Só o sentiu junto a si ladrando com som cavo e, convenhamos, pouco ameaçador. O Escrivão não reagiu. Os pés vão presos e os pontapés exigem balanço. Também não gritou arreda!, como o polícia de Enid Blyton. O incidente deu para rir e para falar de cães e de episódios com eles, que é inútil especificar.
Descemos o Bolho, subimos para Sepins, inclinámo-nos a sessenta à hora para Ventosa e foi então que se deu o segundo episódio, o tal oitocentista. Dois cães pequenos e, desculpem-me a franqueza, até um pouco ridículos atiraram-se às pernas do Tó. Isto, convenhamos, ainda se admite. O que o Escrivão levou a mal foi o riso dos donos da casa, que vieram ao portão. Eram crianças? Sim, senhor. Mas isso não as desculpa, porque o pai também estava por perto. O Escrivão já não esperou pelos cães: atravessou a estrada com grande alarido e atirou-se a eles. Os bichos, espantados com o despropósito da acção, estacaram na berma e ali ficaram por instantes antes de retrocederem para casa.
Duzentos metros adiante, outro cão, mais encorpado, lançou-se ao Periglicófilo. Aí o Escrivão zangou-se mesmo. Investiu na direcção do pobre animal e, em extremo alvoroço, como diria Fernão Lopes, retirou o pé do estribo, ergueu a perna como se contraísse uma mola e o cachorro, assustado com tal barulho, fugiu por uma sebe onde, instantes antes, não se divisava qualquer buraco.
Que tristes figuras se acolhem atrás dos grandes gestos!
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