Updates from Dezembro, 2020 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 12:48 on 29/12/2020 Permalink | Responder  

    Fins de Junho 

                   Em 24 de Junho de 1945, na Mata, a minha mãe fez nove anos, e ao lado de casa, ao lado da mercearia e do café do Maneco, a fonte foi engalanada para celebrar o dia de São João, numa festa simples que entusiasmava a criança que ela era e hoje lhe dá uma memória terna.

                   Nesse mesmo dia, em Portalegre, José dos Reis Pereira escrevia a sua mãe, feliz por ela ter passado bem o dia de aniversário, com muitos doces e sem as atribulações da doença. O tempo, em Portalegre, «estava muito variável». Ele explica: «Ora calor, ora frio, ora trovoadas, ora ventanias, tudo isto com excesso. Chuva é que muito pouca, de modo que só a uma certa hora do dia corre água das torneiras.» As aulas haviam terminado, e José, Régio para os seus leitores, aproveitou os dias de férias antes dos exames para trabalhar nos romances e nas peças de teatro, e talvez para procurar antiguidades nas redondezas. Ainda pensou ir a Évora, onde o São João era festejado com «uma grande feira», mas resignou-se a ficar em casa. Em breve, nas férias de Verão, iria reencontrar a mãe, o pai e toda a família em Vila do Conde.

                   Antes que o mês acabasse, Salazar encaminhou-se, creio que de automóvel, para o Vimeiro, onde planeava comprar mais uma terra de lavoura. Franco Nogueira, o seu biógrafo, diz que ele passou o tempo em «passeios a pé», «longas conversas com o Ilídio», «visitas a Papízios ou ao Rojão», «idas ao Caramulo», onde participou em «merendas ao ar livre com os Lacerdas e em que leva o seu farnel próprio». As preocupações políticas não lhe travavam o ímpeto de lavrador. Adquiriu, por 1500 escudos, «uma terra de semeadura, de sequeiro, com olival, sito à Eira do Mocho, a Aldrógãos». As irmãs, porém, já não tratavam das propriedades dele com o mesmo zelo. Os lameiros e pinhais estavam em desalinho e não achou caseiro que lhe agradasse. Um cunhado tornara-se crítico do salazarismo e uma irmã escrevia cartas a mover influências por conta da sua relação familiar com o presidente do Conselho. Franco Nogueira enumera tantas preocupações e arrelias que quase fico com pena do António, coitado, tão bom e tão incompreendido.

                   O mês de Junho não terminou sem que, nas traseiras da página quatro, embora num destaque de anúncio, o jornal A Voz Desportiva publicitasse, para o domingo seguinte, o Circuito da Curia: «60 voltas ao Parque da Curia pelos melhores ases nacionais», «organização do Sangalhos Desporto Clube e o patrocínio do nosso jornal». Os conimbricenses interessados pela prova de ciclismo, protegidos pela sombra do arvoredo, refrescados pela proximidade do lago, poderiam tomar o comboio das 10 ou o das 14 horas. O regresso também estava garantido.

     
  • nunorosmaninho 11:15 on 22/12/2020 Permalink | Responder  

    O vagar dos dias 

                   É um grande erro não aproveitar as forças para realizar as obras. É um erro talvez ainda maior presumir que se pode adiar a obra por conta das forças que sentimos. Virá o tempo em que fatalmente faltarão as forças, e a obra não se realizou.

                   Belisário Pimenta meditou nisto em 9 de Junho de 1945, numa carta enviada ao amigo José Maria Cardoso, inspector do Notariado. «Sinto que envelheço e me falta a paciência e a tenacidade com que noutros tempos reuni elementos para grandes obras que projectava.» Belisário Pimenta andava então pela idade de 65 anos. «Isso já lá vai; agora, noto tendência mais para a contemplação do que para o trabalho e lastimo não ter feito, na devida altura, certos estudos que já não sou capaz de completar.»

                   Pesava-lhe o atraso em que ia a sua magna obra sobre as ideias militares do marechal Saldanha, que ele admirava como «chefe militar», de «inegáveis dotes de táctico e de estrategista».

                   E quem diz o marechal Saldanha diz outra coisa qualquer, conforme a pessoa e a mola que lhe acciona os dias.

     
  • nunorosmaninho 13:08 on 21/12/2020 Permalink | Responder  

    Vergílio Correia homenageado pelo padre Nogueira Gonçalves 

                   No dia 3 de Junho de 1945, em Coimbra, um ano após a morte do historiador de arte Vergílio Correia, realizou-se «uma modestíssima homenagem» junto à sua campa, no cemitério da Conchada, organizada pelo padre António Nogueira Gonçalves, também estudioso erudito e probo das coisas artísticas. Havia pouca gente. Excluindo o pessoal do Museu Machado de Castro, que Vergílio Correia dirigira, estavam apenas três pessoas, uma das quais Belisário Pimenta, que tomou nota disto no diário. Considerou a alocução «menos mal traçada», o que é um verdadeiro elogio, sabendo que vem de um anticlerical obstinado e se dirige a um padre.

                   Depuseram-se flores e respeitaram-se os minutos de silêncio. «Eis tudo», disse Belisário Pimenta. «Foi simples e simpática a homenagem. E o que mais me feriu a atenção», concluiu, «foi a ideia partir do Padre embora o Vergílio Correia fosse livre-pensador e ter sido enterrado civilmente, por determinação expressa. Fiquei gostando mais do Padre.»

                   Eu também, coronel. Conheci o Padre Nogueira Gonçalves em 1983, quando cheguei à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e ele, um homem tão velho como o século XX, ainda comparecia às iniciativas do Instituto de História da Arte, por onde passava os meus dias de estudante. Não há nada de mais reconfortante do que o respeito transmitido por algumas pessoas.

     
  • nunorosmaninho 15:29 on 20/12/2020 Permalink | Responder  

    A prisão de um comunista 

                   No dia 3 de Junho de 1945, em Monção, um homem ia tomar o comboio para o Porto. Chamava-se Francisco Inácio da Costa, tinha trinta anos e tutelava a organização clandestina do Partido Comunista Português na região do Douro. Nos últimos anos, o Partido crescera e implantara-se em todo o País. E foi precisamente em Monção que a polícia política do Estado Novo começou uma ofensiva que conduziria, em dois meses, à prisão das direcções regionais e, nos quatro anos seguintes, a um extremo enfraquecimento do PCP.             A polícia talvez tenha tomado Francisco Inácio da Costa por contrabandista, mas, ao encontrar-lhe material de propaganda comunista, entregou-o à PIDE. Mortificaram-no com pancada no Porto e remeteram-no para a prisão do Aljube, onde ficou incomunicável e continuou a ser espancado.

     
  • nunorosmaninho 16:05 on 19/12/2020 Permalink | Responder  

    João Rebelo na Volta a Espanha 

                   No dia 10 de Maio de 1945, oito ciclistas portugueses estavam em Madrid, na partida da Volta a Espanha, que não se realizava há sete anos. Era grande a expectativa deles e do público. Eduardo Lopes, João Lourenço, Jorge Pereira, João Rebelo, Império dos Santos, Júlio Mourão, Túlio Pereira e Francisco Inácio tinham pela frente 3708 quilómetros em dezanove etapas, nove das quais com mais de duzentos quilómetros e uma com 306. Os especialistas lembravam as «rampas de elevada percentagem de inclinação», que haveriam de exigir «carretos com 24, 25 e mesmo 26 dentes», e completavam a frase com reticências, que só posso entender como um sublinhado do esforço.

                   Os nomes que indiquei eram os que estavam previstos. Não sei se estiveram todos. Em contrapartida, Aniceto Bruno, que não foi referido, também por lá andou, a lutar contra os espanhóis. A guerra mundial impediu a participação de alguns dos melhores ciclistas internacionais. Os portugueses formaram duas «equipas»: Sporting e «isolados». Começaram por se destacar João Rebelo e Eduardo Lopes.

                   Na primeira etapa, João Rebelo atacou com entusiasmo, talvez com entusiasmo demais. Um jornalista lembrou que ele era experiente, «mas fogoso em demasia». Terminou em oitavo, a poucos segundos do vencedor.

                   Na terceira etapa, Eduardo Lopes chegou em terceiro, com o mesmo tempo do vencedor. Foi uma tirada de 136 quilómetros, realizada em 3 h. 47 m. 11 s., à média de 35,9 quilómetros por hora.

                   Estes resultados já seriam bons, mas João Rebelo excedeu as expectativas ao vencer as etapas S. Sebastian–Bilbau e Santander–Reinosa. E isto depois de, inferiores em número, os ciclistas portugueses terem prodigalizado uma «combatividade inglória». Lançavam-se ao ataque com a anuência dos ciclistas espanhóis, que depois iam no seu encalço até anularem as fugas. Assim fizeram a João Rebelo na etapa Tolosa–Barcelona.

                   João Rebelo parece ter percebido o engodo táctico e, nas etapas seguintes, em vez de se fatigar inutilmente, aplicou as suas «características de rolador», nas palavras de Gil Moreira, fez jogo de equipa com outros portugueses e explorou as rivalidades entre os espanhóis. Deste modo, alcançou «uma vitória nítida, brilhante e meritória para as cores nacionais». Na chegada a Bilbau, foi o primeiro e Aniceto Bruno o segundo.

                   Na etapa Santander–Reinosa, João Rebelo, prudente, correu à defesa, e ganhou com a vantagem de oito minutos sobre o primeiro espanhol.

                   À entrada da penúltima etapa, João Rebelo seguia em sexto na classificação geral, atrasado 44 minutos em relação ao líder. Mourão era vigésimo, Aniceto Bruno vigésimo quarto e Império dos Santos vigésimo sexto. O exigente Gil Moreira tributou-lhes a sua admiração. O «comportamento magnífico» de João Rebelo permitiu-lhe acabar a V Volta a Espanha em sexto, a 1 h. 2 m. e 6 s. do vencedor, Delio Rodriguez, e a apenas oito segundos do quinto classificado. Mourão foi décimo sétimo, Aniceto vigésimo terceiro e Império vigésimo quinto (penúltimo).

                   Na opinião de Gil Moreira, João Rebelo «soube impor-se pela maneira voluntariosa como correu, atacando sempre que as forças lhe permitiam e conquistando, minuto a minuto, o tempo que perdeu em duas arreliadoras avarias». E ainda foi o segundo classificado no Prémio da Montanha, a um ponto do vencedor.

     
  • nunorosmaninho 10:52 on 16/12/2020 Permalink | Responder  

    O monopólio dos pneus 

                   Em 5 de Maio de 1945, o jornal Notícias de Coimbra publicou vários artigos obre o concelho de Anadia, com s quais angariou receita publicitária e difundiu os méritos progressivos dos habitantes desta parcela da Bairrada na agricultura, indústria, educação e assistência médica e social. Neste tempo, era de Sangalhos que se falava, por se ter tornado «o maior centro da indústria velocipédica em Portugal» e um «grande centro da indústria de vinhos espumantes naturais». Tratarei apenas dos velocípedes.

                   A produção de bicicletas encontrava-se gravemente afectada pela «falta de pneumáticos», que prejudicava os fabricantes e distribuidores e os punha em conflito. A Companhia Nacional de Pneus fabricava pouco e praticava um rateio considerado injusto. Leio que esta Companhia «distribui 50% a cinco fabricantes de bicicletas, reservando para os demais apenas 5%». Saem favorecidos os fabricantes mais antigos. A minha dúvida, talvez apressada, relaciona-se com os 45% remanescentes.

                   O jornalista, e muito bem, viu logo que o problema está no monopólio legal atribuído à Companhia Nacional de Pneus, fora da qual não há autorização legal para produzir e distribuir pneumáticos. E foi assertivo a lamentar que essa empresa monopolista estivesse a pôr «entraves à montagem de uma fábrica de pneus para bicicletas, conforme verificámos através de documentos que nos foram facultados».

                   Há dois meses, repetiu-se este tipo de embaraço. Quis comprar câmaras-de-ar do tamanho 700x23c, e não as havia. Ninguém quis culpar uma Companhia que já não existe. A responsabilidade é, agora, do vírus corona.

     
  • nunorosmaninho 16:22 on 14/12/2020 Permalink | Responder  

    As inquietações de Belisário Pimenta 

               Em 1 de Maio de 1945, Belisário Pimenta estava na sua quinta de Paz, sobranceira a Mafra, e passava os dias a copiar o ensaio sobre os aspectos militares na obra de Eça de Queirós. Andava nisso há meses, à pressa, numa lufa-lufa, para aproveitar a maré de vendas oferecida pelas comemorações centenárias do nascimento do escritor. Sentia-se debilitado, num «estado nervoso intenso», que lhe retirava tranquilidade para o trabalho, e duvidoso de que a censura aceitasse a publicação que empreendia com tanto esforço. São problemas que não explica, talvez inquietações do dia-a-dia, que lhe afogavam o próprio prazer da leitura. Belisário estava num período depressivo, desacreditado dos homens e do mundo, e certo da dureza da vida. Abatia-o a doença do seu amigo Ferreira Lima, «tão bom, tão honrado, tão trabalhador, quem sabe perdido para sempre».

     
  • nunorosmaninho 15:49 on 13/12/2020 Permalink | Responder  

    Salicórnia 

                É preciso acabar os anos sem melancolia. A chuva, o vento, o frio, a doença: tudo se juntou, em Dezembro, para suspender o ciclismo de domingo. A noite vem às cinco da tarde. Os fins-de-semana prolongados pelos feriados de 1 e 8, que nos deviam ter levado ao Caramulinho, foram criados para nos prender em casa. Por todo o lado, em nosso redor, há notícia da propagação do vírus corona e de mortes, algumas em três dias. A prudência aquietou-nos.

                Entra-se no espírito de balanço. Graças a mais um papel quase perdido, relembrei-me de que, no domingo, 9 de Novembro de 1986, depois de uma noite em branco a comer castanhas em casa do Periglicófilo, e para cumprir um tolo desígnio proclamado aos amigos, dei a bem amada corrida pela Cabreira. Eram sete e um quarto da manhã. Despachei a volta em 25 minutos e fui dormir.

                O papelinho, aparecido fora de tempo, fez-me pensar na singularidade de nunca ter medido a distância, mesmo depois de anotar as recordações desportivas desse tempo. Quando digo nunca, quero dizer até agora, Dezembro de 2020. Ora, sabendo que dei aquela volta, pela primeira vez, aí por 1977, num grupo de dez, com idades variadas, à noite, num tropel que só a extrema juventude permite, concluo que demorei quarenta e três anos a pegar no automóvel e, sem outro objectivo, subir a encosta da Cabreira, entrar em Horta, virar junto ao fontenário e lavadouros, onde muitas vezes bebíamos e molhávamos a cara, descer a leve inclinação que conduz à Mata, passar pela loja que foi do avô Maneco, prosseguir até ao centro da Curia e daqui até Tamengos. Por acaso, aproveitei para dar andamento ao velho automóvel do meu pai, que me esperava na varanda. Marcou 6,2 quilómetros.

                Entre as coisas que este ano permitiu, lamento não ter podido escrever a palavra salicórnia.

     
    • António 16:09 on 13/12/2020 Permalink | Responder

      Pena não ter sido no Opel Manta…

    • nunorosmaninho 16:34 on 13/12/2020 Permalink | Responder

      Tem toda a razão. Infelizmente, o Opel Manta parava muitas vezes, sem razão aparente, e eu já temia sair com ele. A medição do itinerário fez-se no Volkswagen Golf, que também já vai com trinta anos.

    • António 19:08 on 13/12/2020 Permalink | Responder

      O tempo passa!
      Abraço.

  • nunorosmaninho 16:02 on 12/12/2020 Permalink | Responder  

    Hitler em chamas 

                   Na magnífica biografia que escreveu sobre Hitler, Ian Kershaw abre o capítulo final com o último aniversário do ditador, o quinquagésimo sexto, em 20 de Abril de 1945. A pompa e o júbilo dos anos anteriores deram lugar a um ambiente fúnebre. A Chancelaria do Reich, onde se encontrava foragido, quinze metros abaixo da superfície, estava em escombros. A celebração era um constrangimento para todos, incluindo para ele, que aceitava os parabéns com a morte à frente dos olhos.

                   De madrugada, foi acordado para receber a notícia de que os soviéticos estavam a noventa e cinco quilómetros de Berlim. Na verdade, não conseguia dormir, e por isso deu instruções para o despertarem uma hora mais tarde do que era habitual, às duas da tarde. Já se ouvia a artilharia inimiga quando recebeu os altos dignitários, que lhe vieram dar os parabéns e proceder às despedidas.

                   Chegou a noite. Quem podia, fugiu. As bombas atroavam no centro de Berlim, fazendo estremecer as fundações da Chancelaria. Em horas, os soviéticos chegaram aos subúrbios da cidade. Hitler gritava às poucas pessoas que se mantinham ao seu lado que tinha sido atraiçoado. Tudo está muito bem contado por Ian Kershaw, e eu limito-me a segui-lo.

                   Depois, foi tomado pela prostração. Pediram-lhe que retirasse, para não ser aprisionado. Recusou. Goebbels viu coerência nessa atitude e juntou-se a ele, com a família. Hitler ainda protagonizou episódios coléricos e recessões apáticas. Deu instruções para que o seu corpo fosse incinerado. Perante Albert Speer, arquitecto e ministro do Armamento, filosofou sobre o suicídio e a libertação de uma «existência de infelicidade».

                   Hora a hora, o fim de Hitler tornou-se iminente e aguardado. Discutiam-se abertamente os melhores processos. Quem quis, recebeu ampolas de ácido prússico. Hitler, paranóico, testou a eficácia na sua cadela, pela qual nutria mais afecto, escreve Ian Kershaw, «do que por qualquer ser humano, provavelmente até incluindo Eva Braun». Verificando o seu efeito letal imediato, meteu-se no quarto. Os soviéticos não deviam estar a mais de quinhentos metros.

                   Hitler tomou conhecimento da execução de Mussolini, embora seja impossível verificar se também soube das circunstâncias cruéis em que foi pendurado, de pernas para o ar, e apedrejado pela multidão.

                   Despediu-se do pessoal doméstico e dos médicos pessoais. Os soviéticos atacaram a chancelaria. Era evidente que Berlim cairia nas suas mãos em poucas horas. Hitler anunciou que daria um tiro na cabeça ainda nesse dia e que Eva Braun também se mataria. O oficial das SS encarregado da incineração solicitou a gasolina ao motorista de Hitler.

                   O grande Führer almoçou à hora habitual. A bala entrou-lhe pela têmpora direita. A ingestão de ácido prússico deixou um odor a amêndoas amargas. Os assistentes levaram-no para o jardim e puseram o corpo de Eva Braun ao seu lado. Regaram-nos com gasolina em abundância e incendiaram-nos. Quando os soviéticos chegaram, em 2 de Maio, foi a dentição que o identificou. Os restos seguiram para Moscovo.

     
  • nunorosmaninho 13:01 on 11/12/2020 Permalink | Responder  

    Mussolini em Como 

                   Vencedor da guerra, derrotado nas eleições, Winston Churchill dedicou-se à pintura e à escrita. Na sua opinião, Mussolini e Hitler mantiveram as ilusões militares quase até ao fim, acreditando, quando tudo falhava, nas possibilidades miríficas das bombas voadoras. No dia em que a revista Stadium noticiou a vitória de João Rebelo na corrida de fundo, Mussolini resolveu desmobilizar as suas poucas tropas. Churchill diz que ele reuniu, em Milão, com as tropas italianas que lhe eram contrárias e, num «último gesto de independência», «retirou-se furioso».

                   Anoitecia. O que ele fora resumia-se, agora, a trinta veículos com os líderes fascistas sobreviventes, que se encaminharam, sem plano, para o lago Como. Cada um começou a pensar na melhor maneira de se salvar. Mussolini juntou-se a uma pequena coluna de tropas alemãs, cujo chefe, temendo a Resistência italiana, deu ao Duce um sobretudo e um capacete alemães. O disfarce não foi suficiente. A Resistência interceptou a coluna, reconheceu-o, prendeu-o, levou-o e fuzilou-o, juntamente com a amante. Os seus corpos reapareceram em Milão, pendurados pelos pés, numa estação de gasolina onde há pouco tinham sido fuzilados Resistentes italianos. «Enviaram-me uma fotografia da cena final», escreve Churchill. «Fiquei profundamente chocado.»

                   Laura Fermi, a biógrafa de Mussolini, deu, como é natural, mais pormenores. Incapaz de se opor ao avanço dos Aliados, destituído do poder, obrigado a encarar a derrota, as acções de Mussolini tornaram-se caóticas e ele próprio «divagava como uma folha na tempestade».

                   No dia 18, recebeu um telegrama de Hitler, que se queixava da invasão da Alemanha pelo bolchevismo e pelo judaísmo. No dia 20, fez planos de combate, nos quais só ele acreditava. No dia 25, tentou o tal acordo com a Resistência, e saiu, realmente irritado, porque a reunião lhe pareceu uma armadilha. Mussolini apresentava, segundo o seu médico, a face «extremamente contraída e pálida como a morte». Os alemães que lutavam em Itália renderam-se sem o avisarem, e o cardeal, sob cuja égide o encontro se fizera, só lhe soube dizer: «Arrependa-se dos seus pecados.»

                   No dia 26 deixou Como. Esperava que uma coluna lhe viesse dar protecção. Afinal, ela desfez-se em rendições. A 28, tentou juntar-se às tropas alemãs em retirada. Andaram dezasseis quilómetros, até encontrarem a estrada cortada por árvores e pedras. A partir daqui, só os alemães podiam prosseguir. Foi então que Mussolini se disfarçou. Enfiou um gorro e fingiu que dormia. Mesmo assim, foi apanhado. Chovia e estava frio. Foi levado de carro, com a amante, até uma casa rural, de onde saíram na manhã seguinte. Junto a um muro, leram-lhes a sentença de morte e cumpriram-na.

                   Soube destas circunstâncias numa tradução publicada em 1963. Laura Fermi escreve: «Hoje Mussolini é um esqueleto no armário, um vergonhoso incidente na história de um povo.» Espero que tenha razão. Laura Fermi é italiana, naturalizada norte-americana, mulher do físico Enrique Fermi. Aproveitaram uma deslocação à Suécia, em 1938, onde Enrico foi receber o Prémio Nobel, para escapar às perseguições fascistas aos judeus. A sua esperança é magnânima e digna.

     
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