Instado a narrar as venturas da subida à Torre pelo caminho de Loriga, o Escrivão declarou que elas começaram ainda de noite, quando olhou pela janela e mediu o frio. Para estar em Avelãs de Caminho às sete e meia, diz que se despachou nos preparativos, correu a pôr a bicicleta no automóvel e foi ao encontro do Jorge em frente do Café Camelo. Tão certo estava da pontualidade dele que não se atrasou um minuto para arrumar a segunda bicicleta.
Perguntado se saíram à hora prevista, o Escrivão referiu, por amor à verdade, que o Periglicófilo se atrasou cinco minutos mas nada o faria explicar os motivos exactos dessa curta pendência, que aliás não impediu a chegada a Paranhos da Beira por volta das nove horas. Nesse transbordo até ao ponto inicial da etapa, afirmou-se o dia e desfez-se o nevoeiro.
Sobre as matérias de conversa, o Escrivão acentuou a sua natureza pessoal, afirmando lembrar-se apenas de alusões ao ciclismo, às previsíveis dificuldades da subida, ao seu copioso exercitamento nos últimos dias e até meses, ao pouco treino de bicicleta do Jorge há três semanas para cá e aos projectos para o resto do fim-de-semana. Questionado sobre as diferenças de preparação, o Escrivão asseverou que, para sua desgraça, elas nunca supririam o ingénito vigor atlético do Jorge. Isso mesmo lhe asseverou para que, ao subir a Serra da Estrela pela primeira vez, não perdesse tempo com dúvidas ou receios infundados e por demais absurdos, como o dia demonstrou.
Sabendo que se antecipava a presença do Rúben, foi questionado sobre a maneira de se ajeitaram três pessoas e três bicicletas no outro automóvel. O Escrivão, com uma cordura que talvez lhe viesse do sono, explicou que o Rúben não se pôde apresentar. Daqui resultou que no segundo veículo só viajaram o Periglicófilo e o Informático Motoqueiro. O estacionamento processou-se num local que lhes pareceu muito azado. Infelizmente, tapou a vista de um estabelecimento comercial. O dono repreendeu-os brandamente à chegada. Mas às nove e meia, quando se encavalitaram nas bicicletas, encontrava-se encerrado.
Interrogado sobre as circunstâncias mais marcantes do local acabado de referir, o Escrivão explicou, sem perder a compostura, que foi necessário improvisar uma cortina para ocultar a absoluta nudez de um ciclista que ali mesmo se equipou com grande franqueza de ânimo. Ao Escrivão, ocorreu-lhe a desgraça que teria havido se a senhora que à tarde tricotava já lá estivesse discretamente de manhã, uma vez que a alegada cortina (que não passava de uma manta para intercalar bicicletas), cobrindo a face voltada para a estrada, deixava as traseiras do indivíduo resplandecendo para o interior das vastas montras que a leviandade daqueles homens se apressou a considerar desocupadas. Convidado a ser mais preciso, o Escrivão considerou que nada mais devia dizer por ser inútil à compreensão dos factos ocorridos na serra e prejudicial à moral e aos bons costumes.
Cumpridos os prolegómenos, ia dar-se início à prova de resistência, a qual pode ser dividida em cinco etapas: de Paranhos à primeira inclinação de catorze por cento; desta ao cruzamento com a estrada do Sabugueiro, troço que constituiu o cerne do dia; do dito cruzamento à Torre; descida ao Sabugueiro para almoçar; e do Sabugueiro até Seia e Paranhos. O Escrivão denunciou com vivo repúdio a ânsia de minúcia contida neste sumário, quer porque os leitores das viagens cíclicas não estão habituados a tal extensão, quer porque deixa antever uma larga soma de minudências. Encontrando-se presente o provedor do blogue, este acusou o Escrivão de estar diminuindo as faculdades, a inteligência e o gosto das leitoras e dos leitores. E de imediato extraiu uma nota de culpa, que proclamou suspensa enquanto o Escrivão mantivesse o espírito de colaboração.
Passando-se à primeira etapa, o Escrivão explicou que ela foi feita com facilidade e gáudio. Pararam para tomar café em São Romão, fizeram curtas captações de vídeo, divertiram-se vendo o Jorge desparecendo com agilidade pela encosta. Prestes a entrar na segunda etapa, o Escrivão captou imagens que, neste momento em que presta declarações, ainda não sabe como estão. Mas lembra-se que daqui para a frente, os ressaibos de videasta esmoreceram à medida que as inclinações aumentavam e toda a força era pouca para manter a bicicleta em movimento. Nas rampas mais violentas, 0 Motoqueiro assumiu uma pedalada certa e imutável. O Periglicófilo, sem mudanças leves para tão forte pendente, sofreu a sua parte. Entretanto, o Jorge andava para cima e para baixo com grande facilidade. Ousou confessar que não estava a ser tão difícil como receava, enquanto os outros três se declaravam estafados.
Rogado a ponderar o uso do último vocábulo, o Escrivão disse desejar mantê-lo por traduzir com fidelidade o esforço absurdo para vencer dois quilómetros com doze a catorze por cento de inclinação depois de vinte e cinco quilómetros a subir muito, tanto que só os curtos patamares atenuavam e que…
Neste ponto, utilizando palavras sem gramática, foi pedido um copo de água, que o Escrivão tomou de um trago. Isso o apaziguou mas não lhe fez desaparecer a angústia que a rememoração daquela cruel ladeira lhe impunha.
Convidado a detalhar a origem de tanta canseira, o Escrivão explicou ter-se sentido enredado numa equação impossível. As cremalheiras da sua bicicleta não admitiam velocidades inferiores a seis quilómetros e meio por hora, a essa velocidade só conseguia pedalar de pé, mesmo assim a bicicleta parava a cada síncope no pedal, mas se se sentasse o cansaço redobrava, e se não descansasse perdia o controlo sobre as batidas cardíacas e não podia descurar os dez quilómetros que faltavam para a Torre.
Cumpriu integralmente o algoritmo da Serra da Estrela? A esta pergunta, o Escrivão confessou ter aplicado de forma superlativa o procedimento catorze e de forma equilibrada os demais, excepto um. Tão preso estava à violência do cansaço que se descuidou na alimentação. Por isso, penou nos quilómetros seguintes até ao momento em que, estando já em inclinações de dez por cento e achando excessiva a fraqueza, se lembrou que não comia há mais de uma hora. Neste ponto, mais bem-disposto, admitiu que terá sido risível vê-lo numa subida íngreme, ofegando, com um pão na mão esquerda, comendo-o aos bocadinhos e abrindo a boca como um peixe a quem falta oxigénio.
Demandado sobre os colegas, o Escrivão asseverou ter sido nessa fase que passaram por ele dois companheiros de ofício que, lendo na sua camisola o nome do patrocinador («Avelino dos Leitões – Mata – Curia»), se declararam de Febres. O Jorge foi com deles. O Rui já seguia adiante. O Motoqueiro permanecia muito certo ao lado do Escrivão. E assim chegaram todos à Torre, onde constataram ter demorado quase três horas e meia, tiraram fotografias, fizeram vídeos, compraram água, conversaram e encaminharam-se a grande velocidade, conforme as curvas e a prudência, até ao Sabugueiro.
Questionado sobre o que fizeram no Sabugueiro, o Escrivão disse que negociaram com a proprietária do restaurante um local seguro para guardar as valiosas bicicletas. Uma escada fê-los internarem-se num espaço obscurecido que conduziu a uma sala cómoda com ampla janela. A mesa foi para seis porque a amizade os unira o grupo da Curia aos colegas de Febres. Bem sentados, escolheram as viandas, trocaram impressões sobre os benefícios de andar de bicicleta, ponderaram a dificuldade em convencer disso quem com eles convive, reflectiram sobre a quantidade de quilómetros que é preciso andar para se considerar um vício, colheram imagens, viram a chuva principiar e engrossar, trocaram endereços electrónicos, foram buscar as bicicletas ao redil e retomaram a viagem que os levou a uma Seia seca, quente e ensolarada, onde os dois grupos se separaram.
Requerido sobre se sobravam forças para grandes velocidades até Paranhos, o Escrivão asseverou que o Jorge mostrou que sim ao empreender uma corrida a mais de quarenta à hora, confirmando a presença dos colegas com breves relances por cima do ombro. Isso durou o suficiente para que as últimas energias se esgotassem.
Interrogado sobre o resto da viagem, o Escrivão deu conta de que ela se fez com serenidade pelo mesmo trajecto da manhã, atravessando Nelas e Santa Comba Dão. Pouco passava das seis horas quando chegaram a Avelãs de Caminho. O Informático Motoqueiro regozijou-se com o sossego do fim do dia e a possibilidade de ver o grande Benfica derrotar não sei que equipa. O Periglicófilo prosseguiu para as alturas da Mata, de onde enviou uma convocatória para a volta do dia seguinte. O Escrivão e o Jorge ainda foram ao Camelo tomar café e assistir aos primeiros minutos do jogo, que acabou com um feliz e rotundo três a zero.
Questionado sobre a relevância deste último informe para as viagens cíclicas, o Escrivão pediu escusa e declarou com uma severidade inútil que não prestaria mais declarações. Estando findo o relato da viagem, nada havia a acrescentar. No entanto, por respeito à verdade, ao equilíbrio e ao pluralismo, o provedor deu instruções para que os demais intervenientes fossem chamados a depor ou, na falta de poder legal para o efeito, convidados a exarar os seus pontos de vista no espaço reservado para os comentários.
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