Updates from Setembro, 2015 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 08:11 on 29/09/2015 Permalink | Responder  

    Um regresso metódico em 56 minutos – Portomar, 27 de Setembro de 2015 

    Quando o Escrivão acordou, as pernas continham, em certa rigidez dolorida, as memórias da véspera. A manhã permanecia obscurecida pela neblina. Mas isso não justifica que o encontro em casa do Periglicófilo tenha rendido apenas três efectivos: o Escrivão, o Paulinho e o Rúben. Para uns, há vindimas, aqui e em Trás-os-Montes; para outros, trabalho escolar e informático; para outro ainda, talvez um descanso reparador depois da serra de ontem.
    Assim sendo, lançaram-se os ciclistas para Portomar, onde chegaram ao fim de uma hora. Um par de natas depois, vieram pelo mesmo caminho. O Rúben assumiu a condução do regresso. Cresceu um palmo no último ano. Trocou o futebol pelo ciclismo. Em breve, entrará num regime metódico e profissional de treino. A ele se deve o ritmo certo, sem lentidão nem pressa, que os trouxe de Portomar à Curia em cinquenta e seis minutos.

     
  • nunorosmaninho 13:46 on 28/09/2015 Permalink | Responder  

    Declarações para memória futura – Seia-Loriga-Torre, 26 de Setembro de 2015 

    Instado a narrar as venturas da subida à Torre pelo caminho de Loriga, o Escrivão declarou que elas começaram ainda de noite, quando olhou pela janela e mediu o frio. Para estar em Avelãs de Caminho às sete e meia, diz que se despachou nos preparativos, correu a pôr a bicicleta no automóvel e foi ao encontro do Jorge em frente do Café Camelo. Tão certo estava da pontualidade dele que não se atrasou um minuto para arrumar a segunda bicicleta.
    Perguntado se saíram à hora prevista, o Escrivão referiu, por amor à verdade, que o Periglicófilo se atrasou cinco minutos mas nada o faria explicar os motivos exactos dessa curta pendência, que aliás não impediu a chegada a Paranhos da Beira por volta das nove horas. Nesse transbordo até ao ponto inicial da etapa, afirmou-se o dia e desfez-se o nevoeiro.
    Sobre as matérias de conversa, o Escrivão acentuou a sua natureza pessoal, afirmando lembrar-se apenas de alusões ao ciclismo, às previsíveis dificuldades da subida, ao seu copioso exercitamento nos últimos dias e até meses, ao pouco treino de bicicleta do Jorge há três semanas para cá e aos projectos para o resto do fim-de-semana. Questionado sobre as diferenças de preparação, o Escrivão asseverou que, para sua desgraça, elas nunca supririam o ingénito vigor atlético do Jorge. Isso mesmo lhe asseverou para que, ao subir a Serra da Estrela pela primeira vez, não perdesse tempo com dúvidas ou receios infundados e por demais absurdos, como o dia demonstrou.
    Sabendo que se antecipava a presença do Rúben, foi questionado sobre a maneira de se ajeitaram três pessoas e três bicicletas no outro automóvel. O Escrivão, com uma cordura que talvez lhe viesse do sono, explicou que o Rúben não se pôde apresentar. Daqui resultou que no segundo veículo só viajaram o Periglicófilo e o Informático Motoqueiro. O estacionamento processou-se num local que lhes pareceu muito azado. Infelizmente, tapou a vista de um estabelecimento comercial. O dono repreendeu-os brandamente à chegada. Mas às nove e meia, quando se encavalitaram nas bicicletas, encontrava-se encerrado.
    Interrogado sobre as circunstâncias mais marcantes do local acabado de referir, o Escrivão explicou, sem perder a compostura, que foi necessário improvisar uma cortina para ocultar a absoluta nudez de um ciclista que ali mesmo se equipou com grande franqueza de ânimo. Ao Escrivão, ocorreu-lhe a desgraça que teria havido se a senhora que à tarde tricotava já lá estivesse discretamente de manhã, uma vez que a alegada cortina (que não passava de uma manta para intercalar bicicletas), cobrindo a face voltada para a estrada, deixava as traseiras do indivíduo resplandecendo para o interior das vastas montras que a leviandade daqueles homens se apressou a considerar desocupadas. Convidado a ser mais preciso, o Escrivão considerou que nada mais devia dizer por ser inútil à compreensão dos factos ocorridos na serra e prejudicial à moral e aos bons costumes.
    Cumpridos os prolegómenos, ia dar-se início à prova de resistência, a qual pode ser dividida em cinco etapas: de Paranhos à primeira inclinação de catorze por cento; desta ao cruzamento com a estrada do Sabugueiro, troço que constituiu o cerne do dia; do dito cruzamento à Torre; descida ao Sabugueiro para almoçar; e do Sabugueiro até Seia e Paranhos. O Escrivão denunciou com vivo repúdio a ânsia de minúcia contida neste sumário, quer porque os leitores das viagens cíclicas não estão habituados a tal extensão, quer porque deixa antever uma larga soma de minudências. Encontrando-se presente o provedor do blogue, este acusou o Escrivão de estar diminuindo as faculdades, a inteligência e o gosto das leitoras e dos leitores. E de imediato extraiu uma nota de culpa, que proclamou suspensa enquanto o Escrivão mantivesse o espírito de colaboração.
    Passando-se à primeira etapa, o Escrivão explicou que ela foi feita com facilidade e gáudio. Pararam para tomar café em São Romão, fizeram curtas captações de vídeo, divertiram-se vendo o Jorge desparecendo com agilidade pela encosta. Prestes a entrar na segunda etapa, o Escrivão captou imagens que, neste momento em que presta declarações, ainda não sabe como estão. Mas lembra-se que daqui para a frente, os ressaibos de videasta esmoreceram à medida que as inclinações aumentavam e toda a força era pouca para manter a bicicleta em movimento. Nas rampas mais violentas, 0 Motoqueiro assumiu uma pedalada certa e imutável. O Periglicófilo, sem mudanças leves para tão forte pendente, sofreu a sua parte. Entretanto, o Jorge andava para cima e para baixo com grande facilidade. Ousou confessar que não estava a ser tão difícil como receava, enquanto os outros três se declaravam estafados.
    Rogado a ponderar o uso do último vocábulo, o Escrivão disse desejar mantê-lo por traduzir com fidelidade o esforço absurdo para vencer dois quilómetros com doze a catorze por cento de inclinação depois de vinte e cinco quilómetros a subir muito, tanto que só os curtos patamares atenuavam e que…
    Neste ponto, utilizando palavras sem gramática, foi pedido um copo de água, que o Escrivão tomou de um trago. Isso o apaziguou mas não lhe fez desaparecer a angústia que a rememoração daquela cruel ladeira lhe impunha.
    Convidado a detalhar a origem de tanta canseira, o Escrivão explicou ter-se sentido enredado numa equação impossível. As cremalheiras da sua bicicleta não admitiam velocidades inferiores a seis quilómetros e meio por hora, a essa velocidade só conseguia pedalar de pé, mesmo assim a bicicleta parava a cada síncope no pedal, mas se se sentasse o cansaço redobrava, e se não descansasse perdia o controlo sobre as batidas cardíacas e não podia descurar os dez quilómetros que faltavam para a Torre.
    Cumpriu integralmente o algoritmo da Serra da Estrela? A esta pergunta, o Escrivão confessou ter aplicado de forma superlativa o procedimento catorze e de forma equilibrada os demais, excepto um. Tão preso estava à violência do cansaço que se descuidou na alimentação. Por isso, penou nos quilómetros seguintes até ao momento em que, estando já em inclinações de dez por cento e achando excessiva a fraqueza, se lembrou que não comia há mais de uma hora. Neste ponto, mais bem-disposto, admitiu que terá sido risível vê-lo numa subida íngreme, ofegando, com um pão na mão esquerda, comendo-o aos bocadinhos e abrindo a boca como um peixe a quem falta oxigénio.
    Demandado sobre os colegas, o Escrivão asseverou ter sido nessa fase que passaram por ele dois companheiros de ofício que, lendo na sua camisola o nome do patrocinador («Avelino dos Leitões – Mata – Curia»), se declararam de Febres. O Jorge foi com deles. O Rui já seguia adiante. O Motoqueiro permanecia muito certo ao lado do Escrivão. E assim chegaram todos à Torre, onde constataram ter demorado quase três horas e meia, tiraram fotografias, fizeram vídeos, compraram água, conversaram e encaminharam-se a grande velocidade, conforme as curvas e a prudência, até ao Sabugueiro.
    Questionado sobre o que fizeram no Sabugueiro, o Escrivão disse que negociaram com a proprietária do restaurante um local seguro para guardar as valiosas bicicletas. Uma escada fê-los internarem-se num espaço obscurecido que conduziu a uma sala cómoda com ampla janela. A mesa foi para seis porque a amizade os unira o grupo da Curia aos colegas de Febres. Bem sentados, escolheram as viandas, trocaram impressões sobre os benefícios de andar de bicicleta, ponderaram a dificuldade em convencer disso quem com eles convive, reflectiram sobre a quantidade de quilómetros que é preciso andar para se considerar um vício, colheram imagens, viram a chuva principiar e engrossar, trocaram endereços electrónicos, foram buscar as bicicletas ao redil e retomaram a viagem que os levou a uma Seia seca, quente e ensolarada, onde os dois grupos se separaram.
    Requerido sobre se sobravam forças para grandes velocidades até Paranhos, o Escrivão asseverou que o Jorge mostrou que sim ao empreender uma corrida a mais de quarenta à hora, confirmando a presença dos colegas com breves relances por cima do ombro. Isso durou o suficiente para que as últimas energias se esgotassem.
    Interrogado sobre o resto da viagem, o Escrivão deu conta de que ela se fez com serenidade pelo mesmo trajecto da manhã, atravessando Nelas e Santa Comba Dão. Pouco passava das seis horas quando chegaram a Avelãs de Caminho. O Informático Motoqueiro regozijou-se com o sossego do fim do dia e a possibilidade de ver o grande Benfica derrotar não sei que equipa. O Periglicófilo prosseguiu para as alturas da Mata, de onde enviou uma convocatória para a volta do dia seguinte. O Escrivão e o Jorge ainda foram ao Camelo tomar café e assistir aos primeiros minutos do jogo, que acabou com um feliz e rotundo três a zero.
    Questionado sobre a relevância deste último informe para as viagens cíclicas, o Escrivão pediu escusa e declarou com uma severidade inútil que não prestaria mais declarações. Estando findo o relato da viagem, nada havia a acrescentar. No entanto, por respeito à verdade, ao equilíbrio e ao pluralismo, o provedor deu instruções para que os demais intervenientes fossem chamados a depor ou, na falta de poder legal para o efeito, convidados a exarar os seus pontos de vista no espaço reservado para os comentários.
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    • silva1t 15:49 on 30/09/2015 Permalink | Responder

      O gráfico da subida pode ser visto aqui:
      http://tinyurl.com/p6r7r49
      este gráfico corresponde à subida mais lenta 🙂

    • nunorosmaninho 11:13 on 01/10/2015 Permalink | Responder

      Mais lenta, mas não ao ponto de demorar quatro horas. Quando fizemos o ponto da situação na Torre, havia tempos de 3h21, 3h27, 3h36, enfim, à volta disto. E foi isso que escrevi. É a minha reputação de escriturário que está em causa!

      • silva1t 11:38 on 01/10/2015 Permalink | Responder

        Sim… confirmam-se os tempos na ordem das 3h20min 3h30min… esta contagem tem erro pois considera paragens (para café e etc) e o facto de o início do contador se ter realizado algum tempo antes das pedaladas 🙂 fica a correção 🙂

        • nunorosmaninho 14:39 on 01/10/2015 Permalink | Responder

          Fiquei convencido e tranquilo. Só mias um pormenor. Nas paragens para «café e etc.», o que é que o etc. contém? Eu sei, mas os leitores distraídos ou assustados com o tamanho das declarações para memória futura podem estar duvidosos.

    • topedrosa 08:59 on 02/10/2015 Permalink | Responder

      Cabe ao Informático Ferroviário sugerir uma pequena alteração ao Escrivão. Fui o “padrinho” do nome Informático Motoqueiro. Na altura, hesitei entre Motoqueiro e Motard. Pesquisei em dicionários antes de escrever por saber que havia nuances, desconhecidas para o comum dos mortais, mas relevantes para esses apaixonados. Não vendo diferenças nas definições encontradas na Internet, escolhi a versão portuguesa, mas fui chamado à atenção (e com razão). É assunto sensível.
      Temos então Informático Motard que, se bem o conheço, deve estar a pensar na 4ª hipótese de subida à Torre … 😉

      • silva1t 11:03 on 02/10/2015 Permalink | Responder

        Informático Ferroviário não consegui chegar a uma conclusão fundamentada na literatura, mas é comummente aceite que motoqueiro é diferente de motard 🙂 neste momento o motard só pensa em subir à torre mas de mota 🙂

  • nunorosmaninho 14:21 on 24/09/2015 Permalink | Responder  

    O senhor Vasconcelos despedaça o procedimento 14 

    Quinta do Cabo (Mata), 24 de Setembro de 2015.
    Ex.mo Senhor Escrivão,
    Interpela-me sobre ninharias a que chama ferozes. Que conversa vem a ser essa? Atreve-se a pedir a minha bênção para coisas impossíveis como a junção absolutamente espúria da ferocidade com a calma? Não vê que está a abusar das dicotomias, que está, contra tudo o que costuma dizer, a alimentar um paradoxo? Pois claro que não gosto! Agora, também usa arcaísmos presunçosos? Fero? Isso era no tempo de Camões e aplicava-se a quem atravessava os oceanos em naus minúsculas e, ao tocar o destino, ainda tinha força para combater. E mesmo isto está passado pelas regras do verdadeiro humanismo e pelo furor dos pós-colonialistas, a quem desejo saúde, longa vida e menos moralismo. A minha vontade era acusá-lo de ser compassivo consigo próprio, dengoso, delambido, amaneirado, mas receio que, atrás dos pós-colonialistas, venham os vigilantes de género, que também têm razão mas não podem trocar as ideias pelo policiamento das palavras.
    Enfim, coarctado como estou, digo-lhe apenas que desprezo a mansidão do seu procedimento catorze, rejeito que ponha o esplendor histórico de uma palavra ao serviço de uma criancice sobre duas rodas. Tenha juízo!
    É o que estimo dizer-lhe, duvidando da sua aptidão para ultrapassar Loriga. O Rúben, esse sibilante rapaz, lá há-de chegar na companhia do extraordinário Jorge. O Periglicófilo e o Informático Motoqueiro também. O senhor… enfim, veremos.
    De V.ª Ex.cia Cr.do At.º e Obrig.do,
    Vasconcelos, velho homem da Mata

     
    • ruigodinho1962 14:28 on 24/09/2015 Permalink | Responder

      O homem ensandeceu de todo. Raia os limites do absurdo!!!
      Se ele considera pouco provável o sucesso da Escrivão na subida por Loriga, em que premissas válidas se baseia para assegurar o sucesso do Periglicófilo, esse desgraçado que nem treinos faz há bastantes dias???!!! Vá-se lá compreender a natureza humana!!!!!

  • nunorosmaninho 10:53 on 24/09/2015 Permalink | Responder  

    Procedimento 14 – Nas máximas inclinações, sê fero e sereno 

    Trepei a rampa para Agadão apenas quatro vezes. Na primeira, fi-lo com barbaridade e prometi nunca mais repetir. Na segunda, atemorizado, duvidei do proveito de tal canseira. Na terceira, encarei-a com espanto, ergui-me do selim, pus os olhos no asfalto, e assim fui, subindo a vista de modo intermitente. Na última, ficou clara a vantagem de ir por ali acima depois de chegar ao Moinho do Pisco. Não é o físico que se treina, mas a atitude. Nem medroso, nem altivo. Fero e sereno. Sinto que o senhor Vasconcelos não vai gostar disto.

     
  • nunorosmaninho 14:33 on 23/09/2015 Permalink | Responder  

    Os piscos do moinho fascinados pela estrela – No dito cujo, 21 e 23 de Setembro de 2015 

    O silêncio que o senhor Vasconcelos depôs na última subida da Serra da Estrela não me afasta das considerações algorítmicas. A Estrela apresenta quatro caminhos principais até à Torre: Sabugueiro, Manteigas, Covilhã e Loriga. No Verão que agora termina, os piscos a que esta nota se refere cumpriram Manteigas e repetiram o Sabugueiro. A Covilhã fica para o próximo ano. Loriga pode ser já no próximo sábado. O frio não é tanto que os pare e o sol suficiente para robustecer o ânimo.
    O leitor destas copiosas notas sabe, porém, que só se alcança o cume com muito treino e a sólida aplicação de um algoritmo. No percurso de Loriga, há troços com inclinações de catorze por cento e uma subida constante e inclemente de dez quilómetros. A serra é a mesma mas o problema ainda mais esdrúxulo. Adivinho a necessidade de um novo procedimento. A falta insinuou-se na primeira subida, algures entre o Sabugueiro e a Lagoa Comprida, bateu na rampa do Moinho do Pisco para Agadão e aqui mesmo se esclareceu anteontem e hoje.
    De cada vez que definem o objectivo da Serra da Estrela, o Motoqueiro e o Escrivão estabelecem um plano de treino no Moinho. Em fim de época, consideram inútil acentuar a carga dos treinos. Assim, depois de irem no domingo a Cantanhede, realizaram simples ascensões na segunda-feira e hoje deixando tempo para um café em São Pedro, mas, hélas!, não se pouparam à rampa de Agadão, essa parede desgraçada, essa monstruosa coisa de 850 metros que só parece fácil uma vez por ano, quando calha ao ciclista estar na sua melhor forma. Não é só a força que conta, nem a robustez dos pobres corações: é a capacidade de, cá de baixo, encarar o desafio abrupto, percorrê-lo metro após metro, descansar em pleno esforço e tocar o cimo supondo que se está na Serra da Estrela e ainda faltam dez quilómetros para chegar ao fim.
    Como extrair de tal experimentação o décimo quarto procedimento do algoritmo da Serra da Estrela?

     
  • nunorosmaninho 18:38 on 20/09/2015 Permalink | Responder  

    A inveja na hora dos comptes rendus – Cantanhede, 20 de Setembro de 2015 

    O esforçado Escrivão é também um pouco distraído. Há semanas, na estrada rasa que antecede a esplanada de Portomar, travou com desespero e não ligou ao facto de o pneu ter raspado no asfalto, nem à iminência de uma queda a mais de trinta à hora. Se não fosse distraído, teria examinado os danos no material. Assim, teve de chegar a casa do Periglicófilo, na semana passada, para que os companheiros, apreciando a pressão baixa da roda, constatassem que o pneu estava, à letra, nas lonas. Se a ponderação do Escrivão não vagasse, deveria ter ido à oficina no dia seguinte. Mas veio a chuva, o vento, a escuridão prematura, e a bicicleta permaneceu quieta, ia a dizer esquecida. E só ontem, ao meditar na volta de final da tarde, bateu com a mão na testa. Por prudência, volteou pelas ladeiras de Arinhos e Óis e não foi além das Campanas. Hoje, por cortesia do Informático Ferroviário, carregou um pneu suplente. Timorato, lembrou-se dos ciclistas de outros tempos que o punham a tiracolo mas não se atreveu.
    A saída a partir da adega de Tamengos impeliu o Lenhador a comparecer. Resmungou contra a ideia de ir a Portomar e, depois de dois giros na rotunda das Campanas, encaminhou-se com os cinco colegas para Cantanhede. Notem que a diferença era andar 50 ou 53 quilómetros. A esplanada estava bem ocupada. O Escrivão, o último a sentar-se, ficou de costas para o bulício das outras mesas. Isto acontece com uma regularidade inquietante. Não é um acaso. Por um lado, ele, além de esforçado e distraído, também é bem-criado e permite que os colegas escolham o lado da mesa. Por outro, começa a notar em alguns uma concupiscência de lugar. Na próxima semana, há-de sprintar para escolher o seu ponto de vista. Talvez assim o Lenhador e o Informático Motoqueiro larguem o ar prazenteiro dos seus comptes rendus. (Não consegui resistir ao estrangeirismo.)
    A bicicleta do Escrivão regressou intacta, mas a do Rúben nem saiu de casa devido a um furo de última hora. Apresentou-se o Paulinho, que comentou as evidentes falhas do mais recente vídeo da Serra da Estrela. Não se ouve o que dizem os ciclistas – disse ele. Mas escutam-se as cabrinhas e o cão – respondeu o Escrivão, como se isso não os ofendesse. Íamos desfigurados – acrescentou o Paulinho. As barrigas não têm o volume que o vídeo sugere – contemporizou o Escrivão. Não me mostraste em grande velocidade, encostado ao carro do Alcédix – terminou ele. Pois não – resumiu o Escrivão, lembrando-se de que nos vídeos originais a única coisa que se ouve é a respiração ofegante do operador de câmara.
    Nesta manhã, faltou o Periglicófilo, ausente no Porto (há uma nova arquitecta em formação), e regressou o Físico, que expõe com fluência o seu peso sem ideia de o reduzir. A conversa tende para este tema nas leves subidas, que ele consegue interpretar como verdadeiras serranias.
    Por falar em serranias, escutei as primícias de mais um avanço sobre a Serra da Estrela. Pode ser já no sábado. Pode ser por Loriga. Pode ser muito difícil. Pode ser impossível. Os dois cavalheiros proponentes pensam ensaiar as forças no Moinho do Pisco, talvez segunda e quarta-feira. Veremos até onde chega o voluntarismo. E força para as filmagens.

     
  • nunorosmaninho 11:32 on 17/09/2015 Permalink | Responder  

    Leitão na Pensão Rosa 

    Ao enunciar as corridas em falta no Verão de 1930, percebi mais uma vez como vai lenta a rememoração. É um problema que ainda não consegui resolver. O Anastácio, adivinhando-me os pensamentos, chamou-me à realidade.
    – Veja aqui na Voz Desportiva: «Pensão Rosa, cozinha à portuguesa, óptimos vinhos, servem-se ceias, especialidade da região, leitão assado, máximo asseio, mínimos preços.» Vamos mas é comer!
    – Onde fica?
    – Ora essa! Aqui na Mealhada. Onde queria o senhor ir?
    – Não é isso. É curioso que em 1930 um anúncio ao leitão assado à Bairrada o comprometa com a região inteira. Em 2015, cada concelho disputa a sua propriedade. Parece-me que há tolices que só aumentam com o tempo.
    – Pois sim, vamos comer. Mas, já agora, ponha o anúncio no bojudo blogue das viagens cíclicas.
    VozDesportiva 02Agosto1930 p4005

     
  • nunorosmaninho 15:17 on 16/09/2015 Permalink | Responder  

    Depois do furo, não basta uma embalagem impressionante 

    – «Enquanto Joaquim Rosmaninho resolve o furo, Manuel Prior avança a grande velocidade. A meta está longe. Convém não perder a vantagem. O Mondego margina caprichosamente a estrada em curvas sucessivas; começam a aparecer as primeiras “caras” conhecidas que vieram esperar os corredores. Rosmaninho volta a avistar-se minutos depois pedalando furiosamente em perseguição do seu competidor, e o representante do União acelera o andamento. Alguns automóveis com elementos unionistas vêm animar o bravo ciclista bairradino.»
    – Mas como poderia o Rosmaninho compensar o tempo perdido?
    – Bem tentou, mas o Prior soube preservar as distâncias. «Na Portela intensifica-se o número de pessoas que aguardam a passagem dos corredores. Prior começa a ouvir as primeiras palmas. Ao entrar na Avenida Navarro, e pelas ruas da cidade, a multidão aclama-o com entusiasmo.»
    – Se bem conheço os usos desta época, deve ter-se formado um cortejo atrás do Prior.
    – «Ao entrar na Avenida Navarro, e pelas ruas da cidade, a multidão aclama-o com entusiasmo. Passada Coimbra, engrossa o número de automóveis que acompanha o ciclista e o carro de apoio do União. Na passagem de nível de Viadores, já perto da Mealhada, os carros são forçados a esperar a passagem de um comboio. Prior passa, e prossegue a caminho da meta e da vitória.»
    – E o Joaquim Rosmaninho?
    – «Abrem-se as cancelas e Rosmaninho, que tem chegado no momento, desce aceleradamente. É-lhe impossível alcançar o competidor, mas não o domina o desânimo.»
    – Carácter não lhe falta.
    – «Minutos depois, a enorme multidão que estava pelas ruas da Mealhada e junto da meta, ovacionava delirantemente Manuel Prior e levava-o aos ombros, pela vitória alcançada. Poucos minutos depois, entrou na meta, com uma embalagem impressionante, Joaquim Rosmaninho, que fez uma prova duríssima, visto que não dispunha de carro de apoio.»
    – Grande corrida! – rematou o Anastácio. – Já era tempo de o senhor Escrivão publicar uma fotografia do Prior.
    – Quer uma? – perguntou José Branquinho de Carvalho. – Veja esta. Está desmaiada mas é a que vou pôr na próxima edição de A Voz Desportiva.
    Lá está o Prior de boné, não sei se em frente da farmácia arte nova da Mealhada. Segura a bicicleta enquanto dois cavalheiros, indiferentes ao fotógrafo, são apanhados logo atrás.
    – É boa – disse eu, contente por ir reunindo os rostos dos principais ciclistas da Bairrada. – Tenho em casa há meses, sem a divulgar, uma excelente fotografia de Aníbal Carreto, uma oferta do Lenhador, que a obteve junto da família do ciclista.
    – Quando é que pensa publicá-la? – interessou-se o Anastácio.
    – Ainda não sei. O meu amigo sabe melhor do que eu que a disputa Rosmaninho-Prior ainda vai durar até Outubro. Primeiro, vamos ver o que se passa nas corridas da Curia, Porto-Braga, Pampilhosa, Penacova, Lisboa-Coimbra e Luso. Depois, sim, havemos de escrever duas notas sobre o Carreto.
    VozDesportiva 9Agosto1930003

     
  • nunorosmaninho 08:51 on 16/09/2015 Permalink | Responder  

    A alegria das coisas simples: o vídeo 

    Para quem tenta fazer história, as datas são muito importantes. Sendo hoje dia 16 de Setembro de 2015, a subida à Torre não pode ter sucedido no dia 25, para o qual ainda falta mais de uma semana. Sobretudo porque a prova de resistência não pertence ao domínio da ficção, e em particular da científica. Tenho dito.

     
  • nunorosmaninho 10:03 on 15/09/2015 Permalink | Responder  

    Pudera! 

    Nas corridas deste tempo, raras vezes se ganhava ao sprint. O combate áspero tendia a isolar os ciclistas. Sim, já o disse. Falta ver a sua aplicação à corrida de 28 de Julho de 1930.
    – «Já não se sobe; caminha-se agora para o vale do Mondego, em direcção a Penacova – explica José Branquinho de Carvalho. – Prior e Rosmaninho fazem sucessivas tentativas para escapar ao competidor. Mas um não larga o outro. É uma luta emocionante. Um irmão do Rosmaninho que o tem acompanhado, mostrando bem que também sabe como se corre, fica agora um pouco para trás.»
    – É o Manuel Rosmaninho, aliás, o Maneco! – acrescentou o Anastácio.
    – Isso mesmo. Ainda há semanas venceu uma corrida na Curia. «Aproxima-se Penacova, e junto à Fábrica de Cal, Rosmaninho passa pelo desespero de um furo irritante. Desce e espera por um auxílio ocasional.»
    – Ocasional? Isso é coisa para demorar muito tempo.
    José Branquinho de Carvalho assentiu à minha evidência.
    – A corrida decidiu-se aqui. «Manuel Prior fica só, à frente, e começa a sentir-se vencedor da prova. Pedala optimamente, bem-disposto.»
    – Pudera! – resmungou sem razão o Anastácio.

     
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