A Fátima dos ímpios – Caxarias, 2 de Outubro de 2014
Quão vãos são os desejos humanos! Queríamos descidas e houve poucas. Ansiávamos pela nortada amigável e saiu-nos um suão constante. Antevíamos a perfeição das máquinas e o Escrivão viu-se com um pneu torcido e três vezes inchado. Achávamos que bastava substituí-lo e foi preciso trocar o próprio pneu sobresselente. Aspiramos à segurança e tivemos camiões sugando-nos nas ultrapassagens. Preferimos sossego e só o obtivemos depois de Condeixa. Desejávamos beleza natural, estradas perfeitas e pouco trânsito e tudo tivemos por fim até Ansião. Idealizámos um dia harmonioso e recebemos sol resplandecente e trinta graus de temperatura.
O encontro fez-se em casa do Periglicófilo, às oito e meia. Quando o Telmo chegou com o Escrivão, já lá estava o Alcédix que há longas semanas abandonou as viagens de domingo. O Paulinho e o Tó aguardavam na Mealhada. Bastaram dez minutos para o Escrivão perceber que escolhera mal a mochila. Valeu-lhe um arame. O mesmo arame que se presta a alguns energúmenos para derrubar ciclistas serve a outros ciclistas para ajustar as mochilas ao nobre e nunca por demais dilatado peito.
Da Mealhada a Coimbra e daqui a Condeixa, o caminho fez-se pelo horrendo IC2, que a ninguém se recomenda. A subida após Coimbra foi um primor de sacrifício para o Alcédix, cuja poção se reduziu a uma banana. Na dita Condeixa, passámos em frente do mui belo solar dos Figueiredos, mas já a pensar na Bike Shop onde a bicicleta do Escrivão haveria de ser regenerada duas vezes: a primeira acabou-lhe com as protuberâncias indesejadas e a segunda, depois de dois quilómetros para a frente e dois para trás, permutou um pneu sofisticado (mas dado a abrir onde não deve) por outro provido de poderosa estrutura e uma distinta risca azul.
Depois, veio o suão e o cansaço. O calor. O almoço. Subidas. Descidas. Boas velocidades. Os quilómetros totais passando a oitenta, noventa, cem. Fátima cada vez mais perto. Outra inclinação. O Alcédix não se negou ao esforço, mas as pernas sim. Fátima estava perdida. Os ímpios ficaram a dezanove quilómetros do santuário.
Reparem que converti a parábola do Gravier num princípio, e isso exclui mil pormenores. Não vi (e não contei) Alcédix parando numa descida e arrostando no chão as penas do seu cansaço. Foi isso a sete quilómetros das Caxarias. Parece que alguém se pôs na estrada, como nos filmes, abanando os braços aos automobilistas. E assim o Alcédix chegou de carro à estação ferroviária, enquanto o Paulinho manobrava duas bicicletas para espanto dos indígenas. O Escrivão deu enfim uso à sua pesada mochila, trocando de roupa e sapatilhas. Sentiu-se remoçado. E talvez tolo por tanta carga para tão pequeno benefício.
ruigodinho1962 21:22 on 07/10/2014 Permalink |
É da minha vista ou os barrotes estão tortos?!
Isto é como quem diz: será que sonhei ou havia partes no texto que evaporaram?!
Mas eu acrescento…
Lembro-me bem de quando sentimos que a vingança se serve fria! Foi lá numa das muitas pequenas localidades que atravessámos. O cão que dormia o sono dos justos numa espécie de largo. Ali à mão de pagar por todas as ladradelas de todos os cães que nos têm apoquentado nas nossas viagens. Alguém usou dos seus conhecimentos no mundo da linguística e ladrou alto e bom som ao descontraído patudo. Acordou estremunhado como se o mundo estivesse a desabar, girando a cabeça numa volta de 360º várias vezes repetida. Procurava provavelmente por algum da raça dele. Passou os olhos pelo cicloturista ladrador mas nem o viu! Estava consumada a vingança. Num cão que se decerto nunca ladrou a nenhum ciclista, mas, já diz a sabedoria popular, pagou o justo pelo pecador. E o ciclista lá seguiu, rindo como o Mutley das Máquinas voadoras.
Também pensava ter visto referências a um tal monovolume, algo parecido com um jipe. Foi grande o barulho que fez! Mas nem se pode dizer que tenha sido o próprio veículo a emitir os sons!… Quem diz que os homens é que são os atrevidos por se meterem com as mulheres?!
Igualmente interessante uma conversa a três, à porta de uma fábrica de solipas de cimento, enquanto esperavam por desenvolvimentos no núcleo mais retardatário do pelotão. Alguém estranhou que a Senhora de Fátima não possibilitasse a chegada de todos a bom porto, visto que tão devotadamente se haviam disposto a semelhante percurso. Logo alguém contrapôs, colocando em causa a verdadeira religiosidade de todos os ciclistas do grupo e alegando que provavelmente a dita Senhora não estaria muito convencida a receber um grupo tão heterogéneo e de crença duvidosa nos seus milagres.
Vamos ver se consegue fazer o milagre de sábado estar bom para nova tentativa.
Por mim, a minha bicicleta já tem sapatos novos. E se brincávamos com as riscas azuis da roda da bicicleta do escrivão, eis senão quando hoje me aparecem à frente duas rodas iguais a essa!!!