Parecia inevitável que o Anastácio me conduzisse ao Café Santa Cruz. José Branquinho de Carvalho trabalhava nas traseiras do velho convento, uma vez que a biblioteca municipal ocupava, tanto quanto sei, um dos claustros. E Belisário Pimenta, embora ocupado num tribunal militar em Viseu, continuava a ter casa em Coimbra, a cuja biblioteca universitária haveria de doar o seu acervo literário, incluindo um extenso diário. A dúvida que esperava ver esclarecida era a seguinte: o que podemos esperar de 1931?
Belisário Pimenta olhou-me com precaução. Estudava-me, como fazia a todas as pessoas que encontrava pela primeira vez, e, como sempre que indagava alguém, duvidava. Desconfiava de monárquicos e clericais, e tendia a manter-se fiel aos valores republicanos. O ambiente político estava tenso. A Ditadura Militar respondia às revoltas com dureza. Ter uma opinião começava a comportar alguns riscos.
– O mês de Abril foi inquietante – disse ele. – Aí pelo dia 13, ia uma «grande barafunda por causa da revolta da Madeira. Boatos, temores, confidências, o diabo.» No dia 15, tomei conhecimento pelos jornais da queda da monarquia em Espanha. E a 20, aqui na universidade, «os rapazes correram à batata o dr. Fezas Vital; e a coisa foi a tal ponto que o reitor teve que chamar o comandante da polícia para o proteger à saída da aula e da própria Universidade. E depois de os rapazes saírem em manifestação, o reitor requisitou forças policiais.» O país está em alvoroço. «Revoltas, prevenções, concentrações, o demónio!»
– A situação melhorou daí para cá?
– De modo algum! Ainda hoje, 26 de Maio, o dr. Vergílio Correia, professor de história da arte da Faculdade de Letras, me «contou que passeando no Rossio, em Lisboa, no domingo, à hora a que a manifestação dos estudantes estava no seu auge, viu estes dois casos curiosos: a) os rapazes juntarem quantos jornais espanhóis havia pelas portas das tabacarias e quiosques e queimarem-nos no meio de alarido e alegria – evocando os velhos autos-de-fé; b) agredirem um cidadão qualquer que lia um jornal espanhol e que o não quis largar para a fogueira; o qual cidadão era um espanhol que se indignou com a violência e que ameaçou queixar-se à embaixada do seu país. Entusiasmos juvenis de patriotas que a polícia fingiu não ver.»
– Desculpe-me a ignorância: qual manifestação de estudantes?
– Não leu os jornais de ontem? Os ditadores promoveram manifestações em Lisboa.
– Os ditadores?
– Vamos lá ver… As insurreições militares provam que a ditadura não está firme e pode cair a qualquer momento. Por causa disso, o governo e a União Nacional orquestraram manifestações de apoio a Carmona e Salazar. «De tudo, o que notei como digno de nota foi a colaboração dos estudantes das três universidades que se intitulam nacionalistas – eufemismo de integralistas. Segundo os relatos, os rapazes esforçaram-se por dar vivas à ditadura e morras à Maçonaria, aos traidores de Paris e ainda à união ibérica; e no seu entusiasmo foram fazer uma manifestação à polícia da “informação” e à embaixada ou legação italiana vitoriando o fascismo; e para fecharem com chave de oiro foram destruir a redacção e parte da tipografia do jornal A República, único jornal republicano que actualmente se publica.»
– E quanto ao desporto? Espero que vá melhor do que a política.
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