Updates from Março, 2018 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 19:43 on 30/03/2018 Permalink | Responder  

    Os hóspedes descansam, Joaquim Rosmaninho treina 

    A alegria do ciclismo e da imprensa desportiva de Coimbra diminuiu à medida que o Estado Novo crescia. Não vejam nisto é ódio político ao salazarismo. O livro com a história do ciclismo português, que o Leitor António ofereceu ao Escrivão, lembra que a Volta a Portugal não se realizou em 1936 e 1937. As épocas começavam na dúvida, prosseguiam na escassez e acabavam na miséria. Em 22 de Junho de 1937, o calendário oficial apontava corridas em Lisboa, Minho, Cascais e Espinho e a Porto-Lisboa. Na semana seguinte, previa-se uma prova de mil metros nas festas de S. João promovidas pela Câmara Municipal da Figueira da Foz. Compareceram nove corredores e ganhou Joaquim de Sousa, do Sporting. O mais comum, porém, eram os adiamentos, as prorrogações sem justificativa, talvez a desorganização ou o amadorismo desencantado.

    Melhor faziam os hóspedes do Palace Hotel da Curia que se entretinham nos jantares à americana, nas conversas de jardim e nas gincanas automóveis. Quem queria saber de bicicletas quando podia admirar um Jaguar S.S., um BMW, um Mercedes, dois Lincoln, dois Buick, dois Graham, um Studbaker, um Terraplane e um Skoda? Ainda que os jornais locais lamentassem o marasmo da estância, os políticos e a sociedade abastada passeavam sob as longas áleas cobertas de roseiras, admiravam as banhistas na piscina, comentavam a guerra civil de Espanha e pronunciavam abrenúncios à ameaça comunista. Lá estava Henrique Tenreiro.

    Joaquim Rosmaninho é que não tinha vida para estas vidas. O tempo mal dava para enxofrar as vinhas e regar o milho e as abóboras. O pouco que sobrava, roubava-o para andar de bicicleta. No dia 12 de Agosto, haveria o Circuito da Bairrada. Se eu não estivesse com pressa e isso não vos desinteressasse, faria um resumo das provas que, com vários nomes, decorreram na Curia, Anadia e Mealhada nos últimos dez anos. Assim, chamo apenas a atenção para o facto de nos estarmos a aproximar dos famosos circuitos no parque da Curia, disputados mais ou menos entre 1940 e os anos sessenta. O Circuito da Bairrada ainda não é este da Curia, mas Joaquim Rosmaninho, que em mais lado nenhum se apresentava, fazia questão de o disputar.

     
    • António Augusto 03:06 on 01/04/2018 Permalink | Responder

      Foram precisos 50 anos para eu aprender aqui o comprimento largura e altura do ciclismo na nossa (uma vez) grande terra.
      Também agora melhor entender porque o Ti Joaquim passava com a esposa a pé e com a de corrida à mão.Nunca uma pasteleira creio agora que devia ser pecado para ele.
      Quando só e a pedalar com a enchada às costas todo vergado no guiador eu perguntava ao meu mentor “avô” o poquê daquele sacrifício e ele dizia: ele era ciclista.
      Oh….e aí o vizinho patrocinador menino então como eu dizia “o meu ti Quim tem lá uma nova embrulhada nos cobertores”

      • nunorosmaninho 23:11 on 01/04/2018 Permalink | Responder

        O seu comentário é-me muito grato porque confirma que, sem notícias dos factos, as pessoas esquecem os feitos dos homens, e quando os vêem velhos chegam a rir-se daquilo que pensam que nunca existiu.

  • nunorosmaninho 22:15 on 25/03/2018 Permalink | Responder  

    A cabulice no ciclismo – Praia de Mira, 25 de Março de 2018 

    É cábula todo o ciclista que falta reiteradamente às viagens de domingo, alegando motivos plausíveis, dignos do maior respeito, mas que o mantêm débil, sem fibra, sem força e sem a pele tisnada do cansaço, do vento e do sol. Considera-se reiterado, para não dizer contumaz, aquele que por um período mínimo de três meses apresenta uma taxa de presenças inferior a cinquenta por cento. Abaixo de vinte e cinco por cento, entra na classe dos miseráveis e torna-se indigno do nome de ciclista e da honra de possuir bicicleta. Não sou de intrigas. Refiro-me ao Escrivão.

    Todas as semanas recebeu as pacientes convocatórias do Periglicófilo, que, depois de desejar boa noite e ates de entregar um abraço, diziam assim: «Sei bem que nem todos poderão participar no nosso pelotão amanhã. Proponho a concentração à nove horas no Patrocinador. Ainda tenho esperança de podermos rumar a Tamengos. Dizem que a Esperança é a última a morrer, mas a minha vizinha até já morreu há uns anitos. Fiquem atentos.» Mesmo quando a chuva tomba sem piedade, ele encontra nos arcanos da internet sinais de alento para o dia seguinte: «Alguns de vós vão chamar-me maluco, mas venho marcar encontro no Patrocinador. Salvo alteração das condições do tempo.» Ou então: «As previsões não estão bem seguras, mas com um pouco de jeito amanhã vamos pedalar.» E o que respondeu sempre o Escrivão? Cabulices, desculpas, subtis pedidos de indulgência. «Amanhã não estarei. Ainda não é amanhã. Amanhã não sigo viagem. Força para quem vai. Amanhã não será, mas estou a fazer planos para a próxima semana. Falta a certeza do bom tempo para me decidir. Não esperem por mim.»

    Até que chegou uma véspera em que o Periglicófilo, depois de dias de temporal, escreveu: «Neste momento as previsões para amanhã parecem favoráveis. Alguma chuva de madrugada, mas a manhã parece propícia. Se o pregador não mentir… Assim, apontamos para as 9 horas no Patrocinador.» E o Escrivão, com aquele orgulho que os cábulas exibem quando vão à última aula do ano para impressionar o professor, respondeu: «Lá estarei para a segunda corrida do ano!»

    O Paulinho admirou-se porque o considerava quase perdido para o ciclismo. E em sua honra declarou que iriam pelo menos à Praia de Mira, o que se fez a uma velocidade muito certa e moderada. Para compensar a lentidão, conversaram sobre os tempos em que eram jovens e insofridos. Lembrem-se que estes três estarolas fazem viagens juntos a Mira e à Figueira da Foz desde 1985. O Periglicófilo lembrou a excelente forma em que estava há quatro anos, quando puxava o pelotão com o vigor de uma locomotiva. O Escrivão gosta de evocar uma corrida solitária à Praia de Mira, aí por 1983, numa bicicleta minúscula, sobre paralelo infindo, em 59 minutos. É próprio dos velhos falarem de coisas que fizeram e já não fazem. Nas ligeiras subidas meditavam por graça sobre a próxima subida da serra da Estrela.

    Pararam na marginal da Praia de Mira, num café cheio de ciclistas. Nunca tinham visto um domínio tão notório. Talvez uma dúzia de ciclistas para meia de leigos. Aqui, não se lembram de nenhuma velodama, mas viram duas ou três em plena acção. Esta constatação levou o Escrivão a falar com entusiasmo de uma parada de senhoras filmada em Londres, por Cecil M. Hepworth, em 1899. O Paulinho disse que há duas semanas não teve destreza para fotografar uma velodama idosa que passou na rotunda de Vilarinho do Bairro com um embrulho à cabeça. Vou pôr aqui dois fotogramas daquele belo filme.

     
    • ruigodinho1962 23:17 on 25/03/2018 Permalink | Responder

      Escapou aos olhos um pouco cansados do nosso Escrivão a presença de uma velodama no café onde colocámos mais uma nata no nosso rol. Já lá estava quando chegámos; não dei pela saída…

  • nunorosmaninho 13:16 on 11/03/2018 Permalink | Responder  

    E Salazar que nova pátria fez! 

    No dia em que comandou o juramento de bandeira e passou revista à Legião Portuguesa de Leiria, sucedeu um episódio que levou Belisário Pimenta a meditar nos avanços do salazarismo em 1937. Declaro a minha ignorância sobre telegrafia em heliógrafo, mas recomendo aos leitores mais precipitados que estudem o assunto antes de se pronunciarem. O comandante contou-me que «nas provas finais de um regimento, o cabo instrutor dos telegrafistas em heliógrafo» lhe entregou um despacho cravejado de erros ortográficos que dizia: «Saudemos o exército português / E Salazar que nova Pátria fez.» E então? – perguntei a Belisário Pimenta. «Ora se os cabos são assim – o que não serão os generais?» E o País?

    No dia 6 de Julho, quando Salazar, o piedoso, se dirigia à eucaristia dominical, rebentou uma bomba feita para o matar, e que apenas causou prejuízos materiais, manifestações públicas de alívio e repúdio, e missas em acção de graças ao Altíssimo pelo milagre da salvação do chefe do governo. As senhoras de Leiria organizaram uma dessas missas e convidaram Belisário Pimenta. Ele faltou. E assim, embora em recente cerimónia pública Óscar Carmona o tivesse tratado com uma familiaridade que espantou os circunstantes, ignorantes de que o comandante tinha sido pupilo do Presidente da República, a ausência à missa de acção de graças acentuou a suspeita de que pertencia ao Reviralho. «É claro que eu não pus lá os pés, mas também é claro que a minha falta foi devidamente notada.»

    Há-de ter sido nestes dias que Belisário Pimenta percebeu que o salazarismo estava para durar e que teria de fazer uma opção: ou se acolhia ao regime para chegar a general, ou permanecia fiel aos ideais liberais e estagnava na carreira.

    As abundantes associações de ideias que me assoberbam o pensamento remeteram-me de imediato para a conversa que manteve com o genro do seu amigo Francisco Gomes, mas o decoro obriga-me a tratar primeiro das provas de ciclismo que se anunciavam para o Verão que estava a começar: a Volta às Termas da Bairrada e a Volta dos Campeões na Figueira da Foz . Não têm nenhuma obrigação de saber quem era o genro de Francisco Gomes. Chamava-se Vitorino Nemésio.

     
  • nunorosmaninho 23:43 on 06/03/2018 Permalink | Responder  

    A imanência do clero 

    Do funeral de Fausto Sampaio, que me veio da referência de Belisário Pimenta à Legião Portuguesa, a conversa seguiu para a religiosidade, tema que o inquietava como uma obsessão. O comandante, agastado com o recrudescimento clerical, cerrou o cenho quando disse que «nesta bela terra do Liz e do Lena, se sente o padre em tudo». Com a subtileza de leitor fervoroso, acrescentou: «O clero anda manente nesta atmosfera leve e clara.» Um dia, estando acamado com gripe, obrigado a escutar durante duas horas uma aparatosa festa de Corpus Christi, com cortejo, filarmónica e cantochão, lamentou «a baixa submissão ao padre», «a inconsciência, a estupidez, a ignorância». E mal pôde pegar num lápis, escreveu: «Isto é quási feudo da Senhora de Fátima e está dito tudo quanto se pode dizer.»

    Belisário Pimenta a expor-me estas reflexões, e eu a vogar para a fotografia na qual Eduardo Agostinho captou a mesma procissão em Anadia, na segunda metade da década de cinquenta. Procurei atentamente. Não lobriguei bicicletas, mas um padre, uma freira, leigos e anjinhos. E ocorreu-me uma notícia publicada no jornal Acção Nacional desta vila em 23 de Fevereiro de 1940. Tem tudo o que exasperava Belisário Pimenta e era o ar do tempo. Intitula-se «A reconquista» e diz assim como segue no parágrafo seguinte.

    «Fomos há dias a uma terra vizinha onde dizem que a religião está decadente. Pelo que vimos não nos pareceu isso. Sem ignorarmos que por lá sopraram ventos que varreram alguns, apagando-lhes a chama da fé, tivemos, talvez por isso mesmo, a impressão mais viva do renascimento cristão dessa terra vizinha da nossa. Lá ouvimos o murmúrio de orações rezadas pelos caminhos dessa povoação, por grande massa de povo. E de onde a onde, os montes que a envolvem ecoavam cânticos de louvor à Virgem Maria, Mãe de Jesus e Nossa Mãe. Tudo isso é sinal certo de que os corações novamente se abriram à mensagem de Cristo. Ainda bem.»

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  • nunorosmaninho 22:28 on 04/03/2018 Permalink | Responder  

    Ideias cruzadas 

    O leitor não se deve sentir desprevenido pelas viragens drásticas destes apontamentos. Tudo me parece certo e organizado quando se encadeia sem esforço.

    Em 23 de Maio de 1937, Belisário Pimenta, que recebera com desconfiança e desprezo a criação da Legião Portuguesa, viu-se na abominável tarefa de dirigir o juramento de bandeira e de fazer a revista ao corpo de Leiria. Poucos dias depois, na comemoração do ano XI da Revolução Nacional, viu-a partir aprumada para a parada militar de Lisboa. A Legião regressou «triunfante», disse-me ele, «como vencedora não sei de quê». A câmara municipal organizou uma «recepção condigna» e, na opinião do coronel, ridícula tendo em conta que os «heróicos legionários» se limitaram a bramar vivas a Salazar, a Carmona e à Situação.

    O leitor, cansado de excursos, pergunta o que tem isto a ver com ciclismo. Respondo: nada. E com bicicletas? Estive a folhear um pequeno álbum fotográfico de Eduardo Agostinho e encontrei uma vista do funeral de Fausto Sampaio, em Anadia, em Abril de 1956. As palavras de Belisário Pimenta sobre a Legião trouxeram-me à mente os rapazes da Mocidade Portuguesa a desfilar no funeral do pintor, tendo em primeiro plano um homem de bicicleta.

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