Updates from Julho, 2019 Toggle Comment Threads | Atalhos de teclado

  • nunorosmaninho 22:21 on 29/07/2019 Permalink | Responder  

    Primeiro, o Grande Prémio de Anadia foi pelo Caramulo até Tondela 

    O Grande Prémio de Anadia decorreu no dia 3 de Agosto de 1941, dividiu-se em duas etapas e contou com catorze ciclistas. A primeira partida foi dada às 13h30. Os atletas dirigiram-se para Águeda, perto da qual o sportinguista Raposo e o portista Albuquerque tentaram, sem sucesso, escapar do pelotão.

    – Está ali a ver aquele ciclista mais velho? – perguntou o Anastácio.

    Disse-lhe que sim, que é o que se costuma responder nestes casos. E ele redarguiu com uma notícia feliz:

    – É o Pires. Corre a título individual. É o único a fazê-lo.

    – O Manuel Alves Pires, da Pedralva?

    – É o que me parece, embora seja tratado apenas por Manuel Pires.

    Achei que isto me obrigava a um maior grau de objectividade.

    – Sendo assim, vou seguir o que escreve o jornalista de Coimbra.

    Entre Águeda «e Bolfiar, já em plenos contrafortes da serra do Caramulo, Império dos Santos, seguido do encarnado Noé de Almeida, tentam uma sortida»…

    Sortida com o, senhor Escrivão?

    – É o que está no jornal. Dizia eu que Império dos Santos e Noé de Almeida «tentam uma sortida e conseguem, num esforço lindo que espevita a gana dos restantes, distanciar-se uma centena de metros. Nesta altura a marcha começa a tornar-se mais interessante, com um andamento mais veloz e várias tentativas a que todos respondem.»

    – Prossiga. Estamos a chegar à parte realmente inclinada do Caramulo. Vamos ver quem tem pernas.

    E eu prossegui. «Antes de entrarmos propriamente na subida da montanha, os rapazes das camisolas coloridas já se tinham fragmentado em três pelotões. Martins, Aniceto e Raposo vão à frente a ganhar terreno… O primeiro credita-se como um esplêndido trepador e os segundos tiveram que desarmar quando ainda faltavam dez quilómetros para alcançar o ponto culminante. O segundo pelotão vinha a ser chefiado por Fernandes e o terceiro por Albuquerque que tem vindo a queixar-se de fortes dores de estômago. David Silva, o melhor da região, também se atrasa por via de dores que o apoquentam. No entanto, a mala-pata passa e eles não desistem…

    Martins atravessou a meta da montanha com cinco minutos de avanço dos adversários e entra na descida como uma flecha.

    O nosso carro – escreve o jornalista de A Voz Desprtiva – vê-se em apuros para alcançar o terrível fugitivo e só o consegue já próximo da vila términus da primeira parte da prova. O diabo vermelho atirou-se para a descida sem amor ao pêlo, chegando a Tondela com cerca de sete minutos de vantagem.

    A meta estava montada no campo de jogos desta vila, no qual tinha sido improvisada uma pista.

    Nas estradas do percurso, de vistas panorâmicas grandes e encantadoras, foram os corredores muito saudados pela numerosa gente que se juntava na berma das estradas. Todavia o Caramulo levou a palma às outras localidades do trajecto. Foguetes e uma multidão ruidosa vitoriando os homens da caravana, foi a nota alegre desta estância climatérica.

    A ordem de chegada a Tondela foi a seguinte:

    1.º Martins (Benfica) com 2 h. 28 m. e 50 s.

    2.º Fernandes (Porto) com 2 h. 35 m.  e 10 s.

    3.º Albuquerque (Sporting) com 2 h. 36 m. e 5 s.

    4.º Raposo (Porto).

    5.º Pires (individual).

    6.º Cardoso (Porto).

    7.º Aniceto (Porto).

    8.º Gomes da Silva (Sangalhos).

    9.º Império (Porto).

    10.º Simões (Sangalhos).

    11.º Paredes (Porto).

    12.º Herdeiro (Sangalhos).

    13.º David Silva (Sangalhos).»

    Agora, resumiu o Anastácio, é preciso regressar a Anadia.

     
  • nunorosmaninho 21:48 on 26/07/2019 Permalink | Responder  

    Grande Prémio de Anadia 

     

     

    No Verão de 1941, houve na Bairrada, como disse, três corridas de bicicletas. A segunda decorreu de Anadia a Tondela, pelo Caramulo, com regresso pelo Buçaco. Seguiu uma configuração que devia estar prestes a cair em desuso, embora os actuais amadores a pratiquem quando vão para longe e almoçam a meio da jornada. Os corredores realizaram duas etapas no mesmo dia, e o vencedor foi achado mediante a soma dos tempos de cada uma. O organizador da prova, Américo de Matos, chamou-lhe Grande Prémio de Anadia. Um jornalista de Coimbra explicou que este homem, «conhecedor da “psicologia” dos seus conterrâneos, soube preparar um acepipe desportivo muito dado ao seu paladar».

    Ao chegar a Anadia, o Anastácio, vendo a multidão que se agregava à partida dos ciclistas, comentou que a Bairrada tinha uma relação especial com o ciclismo. E eu, ao ler a notícia em A Voz Desportiva no dia seguinte, verifiquei que isso não escapou ao jornalista. Aludiu à Bairrada como uma «região onde o desporto do pedal é cem por cento popular» e a Anadia como a «terra de bons desportistas de quási todas as modalidades, que souberam alcandorar o desporto regional aos primeiros postos». Não se surpreendeu, por isso, embora o tenha acentuado, cm as «horas de vibrante alegria» que ali se viveram. «Tanto à largada como à chegada os corredores tiveram a vitoriá-los uma enorme multidão de aficionados.»

    A organização da prova não foi perfeita. Vários dos melhores ciclistas portugueses faltaram porque os prémios não alcançavam o montante que eles desejavam. A subida do Caramulo é «grande e áspera». O caminho do Buçaco revelou-se «acidentado». Mas o vencedor alcançou a notável média de 31,05 quilómetros por hora.

     
  • nunorosmaninho 21:56 on 23/07/2019 Permalink | Responder  

    O limite e mais além – Seia-Gouveia-Manteigas-Torre-Seia, 20 de Julho de 2019 

    Premida pelo garfo e cortada pela faca, a carne da vazia revelou-se em extremo tenra. Elevada ao céu da boca, as papilas reconheceram-na suculenta e saborosa. Retomada em segunda volta, uns ciclistas objectaram-na e outros repetiram-na. Estavam no Restaurante O Olival, em Manteigas, onde foram porque, cansados do cabotinismo do proprietário da esplanada do costume, o Vendedor se acercou de um homem que ia entrar no automóvel e lhe perguntou:

    – É de cá? Onde é que se come bem?

    Estas perguntas são curiosas porque os ciclistas até tinham pensado em comer algo leve, que não prejudicasse o esforço no vale glaciar do Zêzere. Aliás, contactado pelo telemóvel, o Rúben, que se distanciara para cumprir o plano de treino, já estava na Torre a comer uma simples e desgraciosa sandes, enquanto os outros cinco apreciavam, culpados, a carne deliciosa.

    A manhã começou pior, em Seia, depois de uma viagem em três automóveis, por falta da Toyota Hiace. Querendo espertar para uma jornada que haveria de durar sete horas menos um quarto em cima da bicicleta, tomámos um café consensualmente considerado péssimo, em chávenas talvez pouco limpas, num estabelecimento onde a dona, vendo um cortejo de motos na estrada e não sei se pensando nos seis ciclistas que lhe ocuparam a esplanada, emitiu as seguintes censuras, escutadas à distância:

    – Tudo a passear! E ainda dizem que isto está mal…

    Maldizendo a mulher que assim nos recebeu, avançámos com alegria até Gouveia. A longa volta, que terminaria com 101,5 quilómetros, foi feita uma vez pelo Informático Motard e por mim, seria uma novidade para o Vendedor e o Peninha e coisa nova e simples para o Jorge e o Rúben. Eu olvidara que o caminho para Manteigas, com vistas magníficas sobre a serra, se compunha de uma persistente subida com mais de vinte quilómetros. Nunca mais esquecerei. Mas tudo se faz quando a viagem está no princípio e a vontade não vacila. Depois, começámos a descer, a descer muito e chegámos a Manteigas. Tudo o que ganháramos em altitude, à custa de tanto esforço, perdeu-se. Enfim, quase tudo. Em vez de 1500 metros de desnível acumulado, enfrentaríamos mais de 2600.

    Foi tendo isto em mente que decidimos almoçar no restaurante O Olival. Sabíamos o que faltava subir e não nos quisemos privar de nada. Preferimos queixar-nos do excesso do que da frugalidade. E os lamentos chagaram pouco depois das duas da tarde, quando deixámos Manteigas e nos internámos no vale do Zêzere, tranquilo, silencioso, quente, imóvel. Fiquei logo para trás com o Informático Motard, enquanto o Vendedor e o Peninha seguiam sempre na frente e o Rúben e o Jorge andavam para a frente e para trás, a tirar fotografias e a mirar o nosso esforço. Para os leitores que se perguntam como pode o Rúben estar agora em Manteigas, se ao almoço estava sozinho na Torre, respondo que desceu para nos acompanhar na subida. Foi portanto logo à saída de Manteigas que o título deste apontamento ganhou sentido.

    O sol abrasava, tornava o corpo deliquescente. Os músculos eram tomados pelo cansaço. A bicicleta baixava de velocidade, ameaçava parar, parava mesmo numa sombra, e logo retomava. O Jorge olhava-nos, preocupado. E nós, com bom humor, só queríamos chegar à esplêndida fonte de água fresca. Aqui, todos nos dessedentámos, nos molhámos e reabastecemos os cantis. Faltava o troço mais difícil.

    Chega de lamúrias. Da fonte ao centro de limpeza de neve são cinco quilómetros. Passada a fase pós-prandial, a exaustão não diminuiu, mas tornou-se mais compatível com a energia da mente. O Informático Motard e eu mantivemo-nos sempre na retaguarda, parámos ainda uma ou duas vezes, e seguimos sem desânimo até à Torre. O Vendedor também passou das suas. Dizem-me que ainda desmontou da bicicleta e caminhou ao seu lado com os sapatos nas mãos. O Peninha, que ia tão bem, contraiu uma dor muscular a poucas centenas de metros do topo, o que não o impediu de ficar meia hora à espera dos retardatários.

    Desta vez, não havia nevoeiro. Descemos a boa velocidade até ao Sabugueiro, onde escolhemos uma esplanada aprazível para comer gelados e, no aso do Jorge, tomar um café. Comentámos o esforço desmedido da subida. O Jorge recomendou prudência e mais treino, ou então desafios menos ambiciosos. Mantinha-se a hipótese de uma última incursão para repetir a dupla subida Seia-Torre-Manteigas-Torre-Seia, realizada há dois ou três anos. Estavam nisso o Informático Motard e eu próprio. A razão mandava-nos aplacar os impulsos. Se não encontrarem mais nenhum apontamento sobre a serra da Estrela no corrente ano, isso significa que o bom senso se impôs ao descontrolo da vontade.

    (Fotografia de Jorge Batista.)

    2019-07-20 Serra da Estrela

     
  • nunorosmaninho 21:11 on 19/07/2019 Permalink | Responder  

    Grosso nevoeiro – Seia-Sabugueiro-Torre, 13 de Julho de 2019 

    As grandes questões da humanidade resolvem-se em dilemas tremendos: ser ou não ser, o ovo ou a galinha, chuva ou nevoeiro. O Enólogo, dono de uma sabedoria antiga, gosta de perguntar aos incautos, que andam pelo mundo descuidadamente, o que preferem: muita chuva ou um grosso nevoeiro. Esta podia ser a dúvida dos ciclistas na véspera de irem à serra da Estrela. Os prenúncios de chuva aconselhavam a prudência de ficar em casa. E tanto era assim que, se lhe pusessem o problema, eles optariam, relutantes, pelo grosso nevoeiro. E assim como o desejaram, assim o tiveram.

    A decisão de manter a viagem de bicicleta só foi tomada na véspera, ao fim da tarde, e contou com a anuência do Peninha, do Vendedor, do Informático Motard e deste vosso criado. Seguimos os procedimentos de sábado passado: às sete em Avelãs de Caminho, bicicletas para dentro da carrinha, às nove e meia ou dez em Seia e, três horas e quinze minutos depois, fotografia na Torre. Parece simples, não é? E no entanto, mesmo sabendo que a subida é árdua, a dificuldade ressalta mais quando estamos nela e ainda nem chegámos à Lagoa Comprida. Ou quando já passámos a Lagoa Comprida e os declives, abalados pelo vento, parecem crescer na proporção inversa das forças.

    Supúnhamos, fiados nas previsões meteorológicas, que deveríamos regressar a Seia até às quatro horas para evitar a chuva. Descer a serra com a estrada molhada seria uma insciência indigna de homens maduros. E bem se via, pela negritude do céu e a frieza dos ares, a extensão dessa possibilidade. Enganámo-nos. Bastou chegar à Aldeia da Serra para tirar calças e casaquinhas, e passar o Sabugueiro para conhecer a força do grosso nevoeiro. Até à Lagoa Comprida, vogámos numa nuvem espessa que, em certos momentos, só me permitia ver a três metros, e aos colegas a dez. Depois, conhecemos o sol tépido que pairava sobre as nuvens. Foi nesta parte final que o Vendedor e o Peninha se distanciaram ao ponto de o Informático Motard e eu só os reencontrarmos, estendidos, na placa central da rotunda deserta da Torre.

    A descida foi ainda mais difícil por causa do nevoeiro e muito mais fácil por ser, como diria o senhor de La Palice, a descer. O Vendedor procurou ajudar-me, indo na frente a marcar o caminho. Não me esqueci de envergar o impermeável com elementos reflectores. E assim fomos, num passo de caracol, comigo a lamentar em silêncio que não fizéssemos uma fotografia, que ficaria tão heróica como as dos pioneiros do monte Everest. Almoçámos no Sabugueiro, na esplanada do restaurante sobranceiro à estrada, a que nos temos acolhido, com gosto, nas últimas vezes. O proprietário já vê em nós clientes habituais e presenteou-nos com uma esferográfica, que tenho ao meu lado e diz Grelhados da Serra – Restaurante.

    Retomar o andamento depois do almoço é sempre custoso, porque se faz quando o que mais apetece é dormir. Todos passamos pela sonolência do repouso, todos protestamos pela subida e todos acabamos por a fazer com disciplina militar. De qualquer modo, dois ou três quilómetros de leve inclinação significaram pouco e conduziram a uma extensa descida que, liderada pelo Vendedor, nos pôs em Seia às quatro da tarde, como tínhamos previsto e desejado. E não choveu.

    Fui ao dicionário ver a palavra bueiro. É sempre um buraco por onde se escoam as águas, seja nas estradas, nos terrenos, em muros, nos antigos navios de madeira, nas fornalhas e, acrescento eu, nos carros de bois. Para suster as cargas, por vezes altas, que subiam vários metros, os carros de bois dispunham de quatro buracos nos cantos, onde se metiam paus grossos e resistentes para suster as carradas de mato, palha, lenha ou erva, auxiliados por um adibal. Não calculam o prazer que tenho no uso desta palavra quase morta, que designa no Norte uma corda comprida e grossa empregada para prender cargas volumosas. O tio Josué, pai do Enólogo, tinha um ou dois adibais pendurados no portão de madeira da adega. Ora, sucede que na região da Bairrada se troca facilmente o v pelo b. Daqui decorre que o dilema do Enólogo talvez não passe de uma matreirice. Gostas mais de muita chuva ou de um grosso no bueiro? Os ilustrados em cultura popular devem responder, seguindo velhas tradições de género, que preferem muita chuva. A verdade manda.me dizer que, hoje, os ciclistas da serra preferiram o grosso nevoeiro.

     
  • nunorosmaninho 10:34 on 11/07/2019 Permalink | Responder  

    Resumo do ano de 2018 (atrasado) 

    Se as grandes obras se produzem na persistência e no ânimo, as viagens cíclicas de 2018, assim como as corridas de 1938 e 1939, amadureceram na rotina e numa teimosia branda, praticada no intervalo dos afazeres profissionais. Houve mais trabalho e, para quase todos, menos bicicleta. A própria preparação para a serra da Estrela fez-se tarde e sem drama. Lembrei-me de chamar a este volume moderado com espírito. Mas esse título não daria a força telúrica das páginas dedicadas ao adro de Tamengos, à árvore podre, ao padre Manuel de São Marcos, ao clube dos malacuecos, à velocipedia feminina na Bairrada e aos jovens que iam de bicicleta para a escola de Anadia no princípio dos anos oitenta. Mudei, talvez com dano, para Cariátides de Bicicleta.

    O presente volume começa com uma passagem demorada pela rua do pinheiro manso, ali por volta de 1979. Surge o Abílio d’Aguim, um podador de oliveiras, memórias da escola primária, um pinheiro manso centenário, o Emílio das bicicletas, altercações do Mário Sapateiro na taberna do Mal-Amanhado e versos repentistas do Albino de Val d’Avim na festa de Santo Amaro. Recuam-se alguns anos para medir a reputação social das bicicletas na Bairrada, em 1960. Isto desencadeia uma pretensiosa panorâmica, dividida em cinco afirmativas, onde se aprecia a ascensão e queda da bicicleta, o seu comércio e uso no trabalho, o estado das estradas e a estética das velodamas.

    Em 1937, aceita-se a prática desportiva das mulheres, mas pede-se-lhes que sejam moderadas e não percam a feminilidade. Invoquei Vinícius de Moraes para provar que o seu encanto não desaparece, e até aumenta. E fui buscar velhas fotografias de Eduardo Agostinho para exaltar as cariátides de bicicleta. Belisário Pimenta comanda o quartel de infantaria de Leiria, ele que não era clerical nem adepto do Estado Novo. Isso causava-lhe embaraços, que resolvia no intervalo das leituras e da escrita do diário. Aqui se vê como julgou o soldado que roubou uma onça de tabaco e se mede a violência dos regimes totalitários que assolavam a Europa e davam às democracias um acento pusilânime. Joaquim Rosmaninho reaparece para obter o quarto lugar na Volta às Termas da Bairrada.

    Antes de chegar a 1938, fui com o Anastácio buscar sementes à estação de Mogofores. Passámos pela casa da Rosaira, seguimos atrás de uma carrinha de caixa aberta e, depois de as termos levantado, fomos entregá-las ao senhor Vasconcelos, morador na esplêndida Quinta do Cabo. A conversa foi demorada. Falou-se de arroz doce e de uma espantosa queda de granizo. Também procurei Belisário Pimenta na sua quinta de Paz, mas ele estava ausente. No Verão de 1938, as termas da Curia achavam-se animadas pelo Sério e pelo clube dos malacuecos. Dizia-se que o jurista Afonso Queiró ia jantar com o führer. Acabei por me interessar pelas duas casas do padre de Tamengos, uma das quais com belos azulejos de figura avulsa. O I Circuito à Capital da Bairrada trouxe as melhores equipas a Anadia. O meu desvelo ficou todo, porém, na aparição vitoriosa de Joaquim Rosmaninho na VIII Volta ao Luso. Imagino que esta tenha sido uma das últimas corridas conhecidas do meu tio-avô.

    Esta circunstância deve ter-me promovido a melancolia. E a melancolia levou-me outra vez ao adro de Tamengos, onde, nos anos setenta, emergia uma árvore exótica de grande ressonância local. Fui revê-la com o Anastácio e escrever sobre ela, mas com tal liberalidade de espírito que acabei a escrever também sobre uma velha pasteleira, um caderninho de assentos pessoais, filas de pirilau a caminho do liceu e descidas sem mãos no lancil. Pude demorar-me nestas coisas porque o ano de 1939 foi pobre em corridas velocipédicas. Houve um prémio em Coimbra, trinta voltas a Febres e outras corridas descuidadas. Quando pensava que este ano se esfumaria sem registos de valor, eis que, na Grande Prova Ciclista de Anadia, reaparece Manuel Alves Pires, antigo vencedor da Porto-Lisboa. Há um tempo que se fecha no ciclismo bairradino. Na Europa, eclodiu a Segunda Guerra Mundial.

    Entretanto, os ciclistas de 2018 iam a Cantanhede, Portomar e à Praia de Mira. No Inverno, a rotina faz-se ao pé de casa. Na Primavera, foram à Figueira da Foz, andaram pelo Buçaco e começaram a encarar a serra da Estrela, treinando no Moinho do Pisco e em Pessegueiro do Vouga e Vale de Cambra. As subidas à Torre já se deram no Verão. Os atletas amadores ousaram os caminhos de Manteigas, Sabugueiro e São Romão (Loriga). Não sei bem porquê, estes factos fizeram-me ler o tratado sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires, do século XVIII. O senhor Vasconcelos não quis melhor pretexto e abriu uma acerba troca de cartas para demonstrar ser por vaidade que os ciclistas sobem a serra. Vieram as férias, a praia, e o mês de Setembro soou, como sempre, a fim. As voltas dominicais voltaram a encurtar-se, a perder ambição, a resumir-se a simples idas a Cantanhede e Portomar. E foi após um desses singelos itinerários, que ofereci aos amigos um almoço na nova e incompleta biblioteca-café. O ano encerrou com um assalto ao Caramulinho, no consagrado dia 1 de Dezembro.

     
  • nunorosmaninho 10:15 on 10/07/2019 Permalink | Responder  

    Que mal há na atomização e na autarcia? 

    Em 1941, no cume do poderio nazi, falava-se muito de uma Nova Ordem para a Europa. Os tolos davam sofisticação ideológica a este futuro e concediam-lhe foros de racionalidade e, coitados, de esperança. Liam com atenção os líderes alemães, que propunham uma política económica unificada ou, a contrario sensu, para não ofender os crédulos, que acabasse com a «atomização» da Europa, ou seja, que pusesse fim à «autarcia excessiva na qual todo o país pequeno deseja fabricar tudo, desde o botão até à locomotiva pesada». Acabei de citar o discurso do ministro da Economia da Alemanha, Walter Funk, em Julho de 1940, em Viena, pressurosamente enviado a Salazar. O ministro fascista italiano do Câmbio e da Moeda seguiu logo o raciocínio. A derrota das democracias daria lugar a uma hierarquia económica entre nações, a qual se faria, entre outras maneiras, com a redistribuição das colónias. Salazar havia de estar apreensivo, mas o rosto de um estadista é, de sua natureza, impassível. E o coração, quando calha, também.

     
  • nunorosmaninho 22:33 on 08/07/2019 Permalink | Responder  

    Passear a bicicleta – Manteigas-Torre, 6 de Julho de 2019 

    O dia começa cedo para quem mora na Bairrada e quer subir a serra da Estrela ainda de manhã, sobretudo se o percurso for por Manteigas. Alguns levantam-se antes das seis da manhã, arriscando dormir poucas horas. Encontram-se em Avelãs de Caminho, enfiam seis bicicletas numa provecta Toyota Hiace e seguem, em velocidade certa e segura, até àquela cidade pregada no fundo do vale. Alimentam-se, tomam um café e, quando já passa das dez, dão graças ao tempo fresco que os acompanhará pelo vale glaciar do Zêzere.

    O séquito que seguiu com passo religioso aquela longa e bela estrada tinha, à frente da corrida, o Jorge, que veio simplesmente passear. O seu passatempo tornou-se fazer contra-relógios à praia de Mira, que redundam numa média superior a 35 quilómetros por hora. Isso explica que tenha tirado muitas fotografias, uma das quais, enganadora, me apresenta de braços no ar, como se estivesse a ganhar alguma coisa. O Vendedor apresentou-se na melhor forma de sempre. O Peninha veio para subir a Estrela pela primeira vez e fê-lo sem dificuldade. O Informático Ferroviário, hesitante devido à falta de treino, acabou por chegar ao topo com uma simples ameaça de cãibra. O Informático Motard penou um pouco, talvez por causa da tripla subida do Moinho do Pisco há quatro dias. Não é a passear a bicicleta que se sobe a serra da Estrela, mas é a passeá-la que, em grande medida, se adquire preparação para os grandes esforços. Mantive-me, firme, na retaguarda. Assim cheguei ao topo, depois de um percalço técnico, que passo a descrever.

    Todos os conhecedores da serra da Estrela sabem que o caminho por Manteigas corre quilómetros seguidos pela margem direita do Zêzere, depois guina e percorre a mesma margem em sentido oposto, a um nível mais elevado, até inflectir para a crista da montanha, onde a estrada começa por se cruzar com a que vem da Covilhã e desce algumas centenas de metros até entrar na fase mais difícil do itinerário, que se associa ao perfil muito íngreme, aos grandes pedregulhos e ao arco aberto na rocha, a que, sem grande exagero, chamamos túnel. Aquela descida, onde se pode chegar aos sessenta quilómetros ou mais, é o último descanso antes da Torre. Todos os ciclistas o aproveitam, passando rapidamente da primeira mudança para a décima segunda., Para isso, toca-se rapidamente no manípulo das mudanças simples, à direita do guiador, e no da dupla, à esquerda. A corrente desliza pelas cremalheiras e, em um segundo, passamos de uma pedalada de oito por hora para outra de cinquenta. Foi neste ponto que, ao proceder à mudança da dupla, pensei, pelo ruído da corrente a raspar no metal, que ela tinha saltado. E, assim, quando o Vendedor ia umas centenas de metros à frente e o Informático Ferroviário seguia logo antes de mim, parei para, em três segundos, repor a corrente. Os colegas, que vinham logo  a seguir, perguntaram aquilo que é habitual nestes casos: – Há azar? Havia. Não era a corrente saída, mas o desviador que se desapertara. Eu a segurar a bicicleta e os três amigos a discutirem o assunto com uma chave nas mãos. Resolveram o problema em pouco mais de cinco minutos. Não pude usar mais a mudança dupla, mas foi possível concluir sem dano a peregrinação.

    O que já se revelou impossível foi apanhar o Vendedor e o Informático Ferroviário, que chegaram isolados à Torre. Seguiram-se o Peninha e o Jorge e, por fim, a dupla do Moinho do Pisco.

    A descida provocou calafrios ao Vendedor. O vento frontal criou-lhe um desequilíbrio na bicicleta que ele chegou a temer fatal. A prudência mandava descer devagar até ao cruzamento para a Covilhã. Daqui para Manteigas era como cada um quisesse. Reencontrámo-nos numa sombra aprazível, sentados num muro, com a bicicleta à nossa frente. Fez-me lembrar grupos antigos de velhos aldeãos sentados em banco corrido, descansando o queixo nas costas das mãos que pousam na bengala.

    No restaurante, predominou a opção pelo bacalhau à Brás e um certo cansaço pela insistência com que o jovem proprietário recriminava os empregados e debatia com eles matérias laborais que nós preferíamos ignorar. Ocorrem-me alguns tópicos de conversa, que aqui ficariam bem, mas talvez estendessem demasiado a notícia. Mesmo assim, sumario dois. O Jorge narrou a veemência competitiva de grupos em que participa e nos quais é necessário saber pedalar a mais de cinquenta por hora entre Cantanhede e Mira. Escutei com atenção a história que se passou nesta praia, ou melhor num café desta praia, em que uma jovem senhora cumprimentou, com uma discrição romanesca, um ciclista garboso, dando-lhe um sorriso e um gesto cheio de promessas não cumpridas. Enfim, queriam saber mais, mas terão apenas de imaginar.

    (Fotografias de Telmo Silva e Jorge Batista.)

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  • nunorosmaninho 23:27 on 07/07/2019 Permalink | Responder  

    Antelóquio da serra – Moinho do Pisco, 4 de Julho de 2019 

    Escrevi antelóquio para não dizer prólogo ou prefácio. Escrevi por antipatia, para ridicularizar um vocábulo de que não gosto sem ter motivo. Ocorreu-me esta desnecessária acrimónia para classificar a subida do Moinho do Pisco de hoje, feita com a pura intenção de preparar a incursão na serra da Estrela. Fazendo-se este treino a trinta e oito horas do grande desafio, ao fim da tarde de quinta-feira, era fundamental que não estragasse a força, como ouvi dizer ao senhor Jaime. Para esse efeito, convenci o Informático Motard a pedalar moderadamente pela encosta suave entre Avelãs de Caminho e Boialvo e, sobretudo, daqui para cima. A tarde já se fechava, alguns camiões desciam com os faróis ligados quando concluímos que não seria possível chegar ao topo. Invertemos a marcha ao quilómetro 3,7, marcado a partir do cruzamento de Boialvo. A descida fez-se com a mesma temperança, aquela que faltou ao Informático Motard há dois dias. Disse-me que subiu o Pisco três vezes consecutivas.

     
  • nunorosmaninho 10:47 on 05/07/2019 Permalink | Responder  

    Nelson Neves 

    Os elogios francos ao modo como decorreu o II Circuito da Bairrada dirigiram-se ao Sangalhos Desporto Clube, que o organizou. Havia, porém, uma pessoa por trás do clube, e essa era, como ficou evidente a todos os que acompanharam a corrida, Nelson Neves. O jornal A Voz Desportiva esperou vinte dias para lhe fazer justiça. Na edição de 11 de Agosto, destacou-o nos seguintes termos: «O II Circuito da Bairrada, em ciclismo, foi, sem dúvida, das melhores organizações da província. Nada faltou. Tudo em ordem. Mas a que se deve o “milagre” de tal perfeição? A um nome: Nelson Neves. Uma dedicação, uma vontade firme. Qualquer pormenor? Uma chamada: Nelson? E o “caso” ficava imediatamente resolvido. Nelson a tudo acudia, mas bem, com segurança da obra realizada, e que teve para os seus trabalhos inúmeros a consolação de “melhor não ser possível realizar”.»

    – Sim, muito bem – concluiu o Anastácio. – Mas quem é esse Nelson Neves? Eu sei. Os seus leitores é que não.

    – Quererão eles saber?

    O Anastácio foi sincero e justo.

    – Acho que não. No entanto, se eu fosse o senhor Escrivão, diria na mesma.

    Em Julho de 1941, Nelson Neves tinha apenas vinte e seis anos. Era natural de Vale Grande (Águeda), Veio para Sangalhos em 1932 e aqui casou. Ele foi o principal impulsionador da criação do Sangalhos Desporto Clube, em 1 de Janeiro de 1940. Haveria também de ser ele a fomentar a construção da pista de ciclismo.

    – Como é que o senhor Escrivão sabe essas coisas?

    – Aprendi-as no apontamento biográfico que Eduardo Agostinho lhe devotou no Jornal de Notícias de 10 de Abril de 1968.

    – Mas aposto que não precisou de folhear o jornal para o encontrar.

    – Pois não. Bastou-me pedir uma cópia ao senhor João Venâncio Marques.

    – E já lhe agradeceu?

    – Não perco nenhuma oportunidade.

     
  • nunorosmaninho 10:23 on 04/07/2019 Permalink | Responder  

    Elogio do Sangalhos Desporto Clube 

    O Anastácio irritou-se com a nota anterior.

    – Então, o senhor conta a corrida toda e não diz o nome do vencedor?

    – Vai agora, Anastácio. Ganhou João Lourenço, do Sporting. Em segundo, ficou José Martins, do Benfica. Depois, Francisco Inácio, do Sporting. O primeiro ciclista do Sangalhos foi David Silva, que ainda chegou com o tempo do vencedor, em 16.º lugar. Os outros dois ciclistas do Sangalhos também chegaram ao fim: Herdeiro e Jaime Silva, em 20º e 21.º O famoso Faísca, do Sporting, não passou de nono. No ano passado estava em melhor forma.

    – O que é que os jornalistas de Coimbra acharam da corrida?

    Aproximei o jornal do rosto. O Anastácio sorriu com comiseração. Ignorei-o e li:

    «Sangalhos, a progressiva povoação bairradina, realizou ontem o segundo Circuito da Bairrada. A prova decorreu dentro do maior espírito desportivo e o modesto Sangalhos Desporto Clube pode sentir-se satisfeito pelo êxito de tão grandiosa organização. A Bairrada que outrora usufruiu lugar de incontestável relevo no desporto nacional e particularmente no ciclismo, tem nos desportistas de Sangalhos acérrimos defensores dos pergaminhos do passado. A organização teve sem dúvida um êxito que dificilmente se podia prever. Todos os pormenores foram criteriosamente pensados e não seremos nós que faremos abstenção de dirigir felicitações sinceras aos desportistas que meteram ombros a tão espinhosa empresa. Num tempo em que as organizações particulares escasseiam, é melhor posto em relevo o feito do Sangalhos Desporto Clube.»

    O Anastácio assentia, satisfeito e orgulhoso. Eu prossegui:

    «Com a presença das mais fortes equipas ciclistas do país, a prova – no dizer dos próprios dirigentes do Ciclismo Nacional – foi a mais animada de todas as que esta época se tem realizado. O nosso jornal, que prestou a sua colaboração técnica, dirige aos organizadores mais uma vez felicitações pelo êxito alcançado e faz votos para que no próximo ano tenhamos a repetição da sua prova.»

     
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