Serve este título para voltar atrás e acusar o Escrivão de negligência ciclística e injúrias à polícia. Todos repararam que ele andou desaparecido. No segundo domingo de Agosto, foi ao encontro do longínquo leitor embora tenha ficado muito aquém das estepes extremas da Ásia. No terceiro, partiu para a Figueira da Foz com um leitão do Patrocinador na bagageira. No quarto, querendo reeditar a façanha do leitão, viu-se a lançar imprecações à polícia e às bicicletas! É deste caso insólito que trata, antes de mais, este longo e inusitado texto. A manhã ia quase a meio. O Escrivão não sabia, mas na Curia já começara o campeonato nacional de ciclismo das camadas jovens. Ali no Café D. João, deparou-se com barreiras na estrada e um guarda, o primeiro, que o sossegou:
– Quer ir comprar o jornal? Pode virar à direita e seguir pelo atalho até ao Hotel Boavista*.
E o Escrivão assim fez. Só que na Mata o acesso estava barrado. Parece que o circuito era maior que o das últimas provas. Uma pessoa conhecida e respeitadora veio em seu auxílio:
– Ó senhor Escrivão, por aqui não passa. Tem de ir a Óis.
E o Escrivão foi. Encontrou outras grades e um segundo guarda que apitava desaustinadamente (talvez aflito, talvez encarnando a Ordem) e o mandou para Horta. O Escrivão obedeceu. Andou os quilómetros precisos até achar o terceiro guarda que, a custo, lhe permitiu dirigir-se a Tamengos, onde por força tinha que chegar. Mas ainda Horta não tinha terminado, e todos sabem que não é uma grande cidade, e já um quarto guarda o interpelava com brusquidão, zangado com a presença de um automóvel naquela estrada:
– Por aqui não passa!
E aí o cordato Escrivão, respeitador da bicicleta e da ordem, assanhou-se, pôs a cabeça fora do carro, discutiu, contestou, rebateu, mas não passou. Estava num labirinto. Deslizou quatrocentos metros como um bote na pacatez de lago ou de uma barra fechada. Eram onze horas. Emergiu o quinto guarda, que disse muito tranquilo:
– Não pode passar!
E o Escrivão, colando-se àquela placidez que parecia vir do calor, retorquiu:
– Então vou para onde, se em lado nenhum me deixam passar?
– Não sei. Fica aí até ao fim da corrida, às doze e meia. Vê ali aquela senhora? – E apontou para uma jovem que caminhava. – Trabalha no Grande Hotel da Curia e tem de seguir a pé.
– Mas eu vou para a Figueira da Foz!
– Compreendo. São ordens que tenho.
Ora, o Escrivão faltara à viagem cíclica para estar às treze horas na Praia da Claridade! Durante cinco minutos, protestou e reflectiu, reflectiu e protestou. Sem saber bem o que fazer, empreendeu a rota da Mata (lá ia a senhora para o trabalho) à espera de ser parado por um sexto guarda. Ei-lo na ladeira do Cabo! O Escrivão, para não afastar boas vontades, dirigiu-se-lhe com finura:
– Ó senhor Guarda, ajude-me a chegar a Tamengos.
Tão simples foi o pedido, tão quieto era o sítio, tão amena a autoridade, que o guarda o mandou logo atrás do carro da vassoura, que agora se chama ambulância. O encanto do Escrivão ao assentar os pés no adro da igreja de Tamengos não foi maior porque era evidente que permanecia no labirinto. Chegou a Tamengos, mas não conseguia sair de lá. Já com o carro lotado, deixou-se ficar a resmungar. Todas as saídas estavam cerradas.
– Só nos resta o Freixal.
Os senhores e as senhoras sabem o que é o «Freixal»? Terras baixas de cultivo, alagadiças, onde se diz que há raposas e por onde em tempos se pensou que vagueavam crocodilos. Não estou zombando. Veio nos jornais. Pois esse lugar, que a natureza anda pacientemente a retomar há vinte anos ocupando o que já foi vinha, horta e milheirais, tem a servi-lo um extenso caminho de terra batida por onde um automóvel passa devagar e com espanto. Nem aventura, nem medo: estranheza. Quilómetros de súbito isolamento até chegar aos Cabeços, a Vila Boa e à Ribeira de Ventosa, a «santa terrinha» da minha avó. Um magnífico percurso para os colegas de BTT, sem guardas e sem barreiras.
E foi assim, desta forma improvável, que o Escrivão maldisse a polícia e o ciclismo mas conseguiu cumprir o leitão. Melhor teria sido pegar na bicicleta e ir nela para a Figueira. Com esse treino, não teria sofrido com o Paulinho as agruras de um regresso à actividade na viagem de hoje. Falo do Paulinho, porque o Rui não pára. Até Portomar, com vento favorável, foram cantando e rindo. Depois, na rotunda de Mira, ajudaram um companheiro que, na berma, substituía uma câmara-de-ar e que, querendo ir para o Mamodeiro, seguiu com eles para Cantanhede. Não era um modelo de equilíbrio, mas enfrentou com tenacidade o vento contrário. À medida que o calor aumentava, a força ia-se dissipando. Em Cantanhede, a água fresca operou milagres. No entanto, Sepins foi a verdadeira Terra Prometida do Paulinho. E a Curia a do Escrivão.
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