Fátima e São Jacinto – Julho de 2022 

            No sábado, 2 de Julho, por uma manhã silenciosa e tépida, os ciclistas reuniram-se, na Curia e seguiram para norte. Em Estarreja, rumaram a poente, porque o seu destino era a Torreira e São Jacinto. Quando, a meio da tarde, chegaram aqui a casa, mantinham a galhardia jocosa que anima as longas jornadas. Falou-se do almoço e dos planos para Fátima. A ausência do Informático Motard sugeriu que a serra da Estrela ficará por subir neste Verão. Quando me juntei ao Peninha, ao Diogo, ao Físico, ao Periglicófilo, ao Informático Ferroviário e ao Vendedor para comer uma fatia de bolo, pedi à Elisa que nos juntasse numa fotografia, complementar às da Torreira e São Jacinto.

            Não sei se os amigos andaram de bicicleta no dia seguinte, mas, na segunda-feira, o Periglicófilo mandou uma vista poética da Cruz Alta com a seguinte legenda:

– É só nevoeiro!

            –  Estás a preparar-te para a serra da Estrela? – perguntou o informático Ferroviário.

            – Não – respondeu o Periglicófilo. – É o que se chama sofrer por antecipação. Vou sofrendo aos poucos para ver se não sofro tanto no dia 16.

            Não me chegaram notícias da viagem do segundo domingo de Julho. Sei que a onda de calor amainou para que os ciclistas pudessem andar sem esforço e sem os perigos da insolação. Passaram apenas dois dias, e o Informático Ferroviário mandou uma fotografia da «Cruz alta com o fogo ao longe». O país entrou em chamas. Por todo o lado, subiram labaredas, incluindo no Barracão, a caminho de Fátima.

            – A sério que subiste o Buçaco com este calor? – alarmou-se o Periglicófilo.

            – Sim, mais o Vendedor e o Rúben.

            Logo aqui se começou a duvidar da «peregrinação» a Fátima. Ponderou-se o calor e a humidade do ar. Na volta solitária á Águeda, o Físico viu-se exausto e de cantil vazio entre Boialvo e Avelãs de Cima. Sem ter onde comprar água, foi enchê-lo à Fonte do Moleiro.

Nestes dias infernais, Fernando Alves andava pelo Alentejo, na peugada da viagem a Portugal de José Saramago. Passou por um ciclista na estrada de Brinches. e incluiu-o na crónica diária, aliás magnífica, para a rádio TSF. Escutei-a três vezes e, não podendo dá-la na íntegra, resumo as coisas argutas e sensíveis que lhe acudiram ao espírito. O ciclista ia pelo calor, determinado. Não via a paisagem. Numa subida, contraiu o rosto. O cronista notou que parecia fugir de um «pelotão invisível» e «implacável». Ora, explica Fernando Alves: «Quando assisto a provas de ciclismo, torço sempre pelos fugitivos. Não gosto de pelotões, do calculismo concertado dos pelotões, da máquina trituradora dos pelotões e dos jogos de proteção dos chefes por quem outros batalham contra o vento, preparando passadeiras vermelhas já a poucos metros das metas. Gosto dos que sacodem o marasmo do pelotão, dos que provocam um esticão, dos trepadores que montam apenas o próprio selim. E gosto dos fugitivos que adiam, na pedaleira, o destino aziago.»

            Logo a seguir, foi o meu dia de aniversário. A Celina enviou-me um postal, no qual dava os parabéns, escrevia palavras bonitas e homenageava o meu gosto pela bicicleta. Da cartolina, ressalta uma bicicleta, em cujo fundo se vêem nuvens, flores, pássaros, um candeeiro e um banco para interromper o esforço.

            Para o dia 16, as previsões anunciavam 35 a 36 graus de temperatura nas cinco horas de viagem entre Fátima e a Curia. O vento também estaria contrário. Quem se poderia opor ao adiamento da «peregrinação»? Ninguém. Pensou-se em Setembro. O Vendedor franziu logo o sobrolho:

            – Vou no próximo sábado, dia 23.

            E assim chegou o terceiro domingo de Julho, no qual o Informático Ferroviário, o Peninha, o Periglicófilo e o Vendedor foram a Portomar e Portunhos, pedalando a 37 quilómetros por hora atrás de um jovem enérgico que lhes tapava a brisa contrária.

A chamada para Fátima, lançada pelo Vendedor a meio da semana, foi acolhida pelo Informático Ferroviário e pelo Diogo. Às sete da manhã, juntaram-se na Mealhada, em frente do Teatro Messias, e foram, com o penitente cansaço do costume, até ao santuário, onde se fizeram fotografar. Regressaram pelo próprio pé, realizando assim os  gloriosos 210 quilómetros que ficam o momento culminante da presente época. Recebemos todos com júbilo a jornada e a notícia de que, no dia seguinte, o Vendedor acompanharia o Periglicófilo na voltinha de domingo.

            Pela minha parte, procedi, no dia 22, à limpeza da bicicleta e fui por Ílhavo e Gafanha d’Aquém. Não escondo a felicidade com que pedalei, sem me cansar, durante uma hora. Dei conta da experiência ao Informático Motard, e ele, sem hesitar, remarcou imediatamente a viagem entre a Bairrada e o  cume da serra da Estrela para o Verão de 2023. Só prometi trabalho, como os atletas profissionais.

            No último domingo de Julho, não houve corrida. Para mim, o mês terminou com a leitura do livro oficial do primeiro centenário da Vista Alegre, celebrado em 1924. A fábrica de porcelana saía de um marasmo de três décadas. Por todo o lado se reparavam moradias, se construíam fornos e se edificava um estacionamento coberto para bicicletas. Li assim na página 157: «Como os transportes pessoais na região se fazem quási todos em bicicletas, sendo superior a 100 o número dos nossos operários que usam diariamente desse meio de transporte para a Fábrica, está sendo ali construída uma garage especial para as guardar.»

            Oitenta anos antes, trabalhava como pintor na Vista Alegre um homem chamado José F. Vidal, conhecido por o Tamengos. Nesse tempo, estando a bicicleta por inventar, o Tamengos deve ter ido para Ílhavo a pé, de burro ou numa mulinha bem ajaezada.