As disputas regionais do Verão de 1933 tiveram continuidade na IV Volta a Portugal, onde o Rosmaninho esteve presente e activo. Pedi ao Anastácio que me transportasse para lá. «Mas onde quer que o leve? A que etapa?» Como eu não tivesse planos, deslizou os dedos pelas pontas afiadas do bigode e decidiu por mim. «Vamos ali ao jornal A Ideia Livre. Talvez os cavalheiros saibam alguma coisa.»
Chegámos na véspera da entrada dos ciclistas em Lisboa. Os prelos trabalhavam. O calendário pendurado por baixo do relógio indicava a data de 9 de Setembro. Fomos recebidos pelo jornalista da coluna dos «Sports», que nos levou para um gabinete mais silencioso e acedeu a resumir-nos as provas dos últimos dias. Qual dr. Watson, retirei do bolso um lápis e o bloco de notas, e escrevi a narrativa cheia de pitoresco e imprevistos, onde o Rosmaninho teve, a meu pedido, um merecido destaque.
«Chegam amanhã a Lisboa, os ciclistas concorrentes da “Volta a Portugal” em bicicleta.» – Começou o plumitivo. Percebi que a história ia ser longa e bem composta.
«O Stadium do Lumiar há-de, por certo, comportar milhares de pessoas que, com uma vibração intensa dum interesse absoluto, aguardam a sua chegada, para verem as suas últimas lutas e os seus últimos esforços da “volta”. Anteontem a caravana passou por esta vila.»
Espantei-me:
– A volta passou por Anadia?!
O meu interlocutor assentiu com a cabeça e prosseguiu como se não tivesse sido interrompido:
«A sua passagem estava anunciada para as 14 horas e às 13 já se via um movimento grande de pessoas que chegavam dos lugares próximos.
À hora anunciada, desde o café Dias Moreira, ao cimo da Avenida José Luciano, estavam as margens da estrada repletas de público e muitos automóveis, que pelo atraso da largada em Aveiro, tiveram de esperar para mais tarde.
E, impacientes, esperavam…
Perto das 16 horas, na cabine telefónica 2, era anunciada a passagem dos concorrentes em Sangalhos.
O povo correu aos lugares primitivos e começaram a aparecer os primeiros carros e motocicletas da caravana, até que umas vozes anunciaram alegremente:
– Lá vêm eles!
– Vêm todos juntos!
Era um pelotão de seis corredores, comandado por Rosmaninho.
Começaram, entusiasticamente, os “vivas” ao corredor anadiense, que seguia Barbosa, por ter afrouxado supondo que paravam.
Rosmaninho numa “puxada” tomou novamente a dianteira e seguiu na Avenida José Luciano, querendo distanciar-se.
Trindade ainda não tinha passado e a assistência feminina estava desinquieta! Até que após dois minutos do primeiro, ele passou por entre grandes aclamações, mas ele, relembrando as suas melhores impressões que levou do povo de Anadia quando da “Volta às Termas”, agradece animadamente.»
– Pois muito me conta. Desconhecia por completo os factos que me está narrando.
O gazetista, que envergava uma manga de alpaca, a primeira que alguma vez vi, levantou a mão e deu conta de mais dois pormenores:
«A Direcção do Anadia Foot-Ball Club, na persuasão que os ciclistas parassem, por uns instantes, – como tinha sido combinado em Aveiro –, o que não sucedeu por passarem em pelotão, preparou uma mesa com o melhor espumoso da região, a fim de os corredores se dessedentarem.
Ao Rosmaninho, vai ser oferecida pela rapaziada local, uma artística medalha em ouro.»
O noticiarista recostou-se na cadeira, fazendo-a ranger. A passagem dos ciclistas por Anadia terá ocorrido na etapa Aveiro-Figueira da Foz. Olhou-me com mais atenção.
– Os leitores do seu blogue talvez queiram saber algo mais sobre as outras etapas.
– Sem dúvida. O Lenhador, um dos mais diligentes leitores das viagens cíclicas, gostaria muito conhecer alguns aspectos da prestação do Rosmaninho. Ele recorda às vezes um episódio desdenhoso sobre o admirável ciclista da Mata da Curia. O incidente passa-se precisamente na Volta a Portugal. Assim, o Lenhador poderá dilatar a sapiência e talvez corrigir a história que já passa por lendária.
– Pois com muito gosto. Deixe-me que lhe diga que o Joaquim Rosmaninho tem conhecido nesta IV Volta a Portugal uma sucessão inabitual de infortúnios, apenas superados pelo seu forte carácter. «Na última etapa Vila Real-Bragança, Rosmaninho, sempre com a sua paciência, foi suportando a perseguição do seu maior adversário: o azar.
Entre a povoação de Sanguinhedo e Balsa havia uma subida onde os ciclistas apertaram o andamento, sendo o pelotão “comandado” alternadamente por vários, incluindo Rosmaninho, que foi forçado a atrasar-se para arranjar o guiador. Correu de novo, mas voltou a parar para novo conserto no guiador, que não lhe oferecia segurança… e o caso repetiu-se mais vezes.
A propósito, diz o Diário da Noite, transcrevendo do Diário de Lisboa: “Que teria visto Rosmaninho? Entre Sanguinhedo e Balsa as raparigas atiram flores aos corredores que agradecem com uma e outra palavra gentil. Rosmaninho entortou o guiador… Não percebemos. Que teria visto Rosmaninho para se lhe entortar o guiador.”
Adiante de Romeu, às 16 horas, as tentativas de “fuga” continuaram por parte de diversos corredores, num ritmo violento. Gil e Rosmaninho, apesar de atrasados, conseguiram juntar-se ao pelotão dianteiro.
Em certa altura, Rosmaninho, num instante de negligência, torceu a roda dianteira e caiu. A roda de um automóvel, que o seguia, passou-lhe sobre um pé. Gritos, confusão, alarme, suspeitas de um desastre grave, mas o ciclista, lépido e sorridente, ergueu-se, encolheu os ombros e voltou a montar a máquina, exclamando:
– Não houve azar!
Daí a pouco, Rosmaninho demonstrava sentir uma dolorosa impressão no pé, mas a sua pedalada mantinha-se, inalterável e veloz.
Próximo da meta os corredores mais fortes lançaram-se numa carreira doida, à conquista do primeiro lugar.
Rosmaninho, às 17 horas, empreendeu uma “fuga” decidida. César e Trindade seguiram-no e “colaram-se-lhe”. O andamento baixou de velocidade. Mais uma tentativa inútil.
Mais adiante Rosmaninho continua a sentir o efeito da queda.»
Chegado a este ponto, presumi que estava ouvindo a descrição sumária da 10.ª etapa, uma vez que, depois de assim falar, o jornalista levantou-se, foi buscar três copos e uma garrafa e, sem perguntar nada, serviu o vinho e deixou-me na difícil obrigação de o beber. Efectivamente, batendo com as mãos nos joelhos, prosseguiu como quem enceta um novo capítulo na conversa:
«11.ª etapa – Bragança–Chaves (98 400 metros). 1.º, Ezequiel Lino; 2.º, Trindade; 3.º, Marquês; 11.º, Rosmaninho. Rosmaninho, perto da Meta, teve um “corpo-a-corpo” com Santos Duarte, motivado pelo mau piso da rua que originou que as máquinas se ensarilhassem, tendo Santos Duarte tomado um propósito muito desleal para com o corredor bairradino.
12.ª etapa – Chaves-Porto (179 700 metros). 1.º, João Francisco; 2.º, Santos Duarte; 3.º César Luís; 4.º, Trindade; 17.º, Rosmaninho. A diferença do primeiro ao último corredor foi de 17 minutos e 32 segundo. Numa subida íngreme em Santa Senhorinha, Rosmaninho que se tinha atrasado, alcançou o pelotão, conservando-se junto até dois quilómetros da chegada, onde teve um furo que o atrasou oito minutos.
13.ª etapa – Porto-Vigo (143 500 metros). 1.º, Santos Duarte; 2.º, Trindade; 3.º, Vassalo Miranda; 18.º, Rosmaninho, com a diferença de 1 minuto e 11 segundos do primeiro. À passagem em Fão o comando do pelotão era feito por Rosmaninho. Começou aí a estrada de brita, que segue até Valença. Rosmaninho, à saída da vila, sofreu um atraso, em consequência de se ter quebrado a forquilha da bicicleta. Ficou para trás. Um carro de apoio chegou, pouco depois, sendo-lhe fornecida uma nova, na qual se lança, novamente, na corrida.
14.ª etapa – Vigo-Braga (180 300 metros). 1.º, Valentim Afonso; 2.º, Ezequiel Lino; 3.º, Santos Duarte; 4.º, Trindade; 20.º, Rosmaninho. Apesar de Trindade, desde a 11.ª – não sei se ouvi bem o número – etapa, não se tornar a classificar em primeiro, ainda segue com a “camisola amarela” com a diferença do segundo de 38 minutos e 30 segundos.
15.ª etapa – Braga-Aveiro (131 800 metros). 1.º, César Luís; 2.º, Santos Duarte; 3.º, João Francisco; 4.º, Trindade; 17.º, Rosmaninho. Na sede do Internacional Atlético Club, realizou-se um “Porto de Honra” oferecido pelos senhores dirigentes a Joaquim Rosmaninho, que é representante da região na IV Volta, ao qual assistiram várias pessoas de Anadia. Foram trocados calorosos brindes e foi muito vitoriado o corredor do distrito, que, apesar de tudo, se mantém firme nesta competição, em que tantos têm desistido.
16.ª etapa – Aveiro-Figueira (103 900 metros). 1.º, Alves Barbosa; 2.º, José Marquês; 3.º, Ezequiel Lino; 6.º, Trindade com 10 segundos de atraso do primeiro; 11.º, Rosmaninho.»
Neste momento, as máquinas abrandaram, o bater sincopado dos prelos deu lugar a um ruído baixo e contínuo que fez o meu interlocutor suspender a fala. A sua presença tornava-se indispensável na oficina.
– Tenho muita pena. Voltem amanhã. Ao fim do dia já se deve conhecer o nome do vencedor da Volta.
Apontou para a garrafa. Fiz um gesto de recusa e levantei-me. Contrariado, o Anastácio seguiu-me. Na sala, dois homens tinham acabado de suspender a alavanca da prensa e preparavam-se para limpar o tabuleiro de impressão. Veremos então o que amanhã nos reserva.
ruigodinho1962 14:13 on 31/12/2013 Permalink |
Tivera o Escrivão a mesma disponibilidade cronológica (vulgo, tempo) do Periglicófilo ou pelo menos do Informático e outro galo cantaria!!! Sem dúvida!!!
topedrosa 18:44 on 31/12/2013 Permalink |
Tivera o Escrivão toda a energia canalizada para a bicicleta que não teriamos qualquer hipotese de lutar nesta contagem de quilómetros. Mas, para o nosso bem estar físico e moral, o Escrivão corre, pula, levanta pesos e sei lá que outras actividades, algumas orientais segunda consta.
Em relação ao milagre, ficou prometido uma viagem a Fátima para 2014. Na etapa da Volta, tive direito a bananas quando cheguei. Nesta viagem, a reposição de energia anuncia-se mais bairradina.
nunorosmaninho 11:12 on 03/01/2014 Permalink |
O Escrivão andou a reflectir sobre os exercícios orientais mas não se lembra de nenhum que tenha feito. Os alongamentos (sentados, deitados ou de pé) podem considerar-se yoga?