Inverno

            A viagem pela ciclovia não se realizou na data aprazada. O vento e a chuva tornaram sonbrios os belos caminhos de Santa Comba a Viseu e retiveram os ciclistas em casa. Mesmo o Bruno e a Laëtitia, que romaram ao Alentejo na esperança de passear de bicicleta, tiveram de desistir. O trabalho de carregar dois velocípedes fracassou quando, prontos para iniciar o passeio, uma chuvada os fez desistir.

            No sábado seguinte, ia a manhã a meio quando chegou uma mensagem do Periglicófilo. Vinha bem-humorada. Merece um parágrafo próprio, recolhido à direita, em tipo menor:

Estou a ouvir estas sucessivas bátegas e a imaginar-me a conduzir o meu barquinho pelo Dão acima! E no próximo sábado a dose repete ou quase. E também amanhã está em sério risco. Sei que alguns de nós são sportinguistas, mas acho que já estamos a apanhar verdete demais!

            O Periglicófilo escrevia estas palavras na Mata e eu lia-as na Vista Alegre enquanto a água repicava nos vidros e corria nas caleiras. O Físico acrescentou:

Estou próximo do Dão. Aqui não chove pouco! Com este tempo, nem bicicleta nem gaivota.

            À tarde, presenciei a invernia em  Vila Nova de Paiva. Na sala, escutavam-se palavras de apreço e de exegese sobre Aquilino Ribeiro, o mestre literário destas Terras do Demo. No exterior, o vento já não assobiava, a chuva suspendera-se, escurecia o céu e o frio ia fatalmente chegando aos zero graus. Não me lembro de Aquilino Ribeiro aludir a bicicletas nos seus livros. Aquelas serranias agrestes só estavam afeitas aos passos de caminhantes e azémolas.

            Veio outra semana, o céu chegou a conhecer o sol, sobreveio a sexta-feira, as nuvens apressaram a noite e a água desabou, inclemente, sobre a esperança dos ciclistas.

Estávamos em Março. A luminosidade abria mais cedo os dias e estendia-se pela tarde fora. Falava-se em suspender as lareiras no dia de S. José. O sol resplandecia com mais firmeza. As águas escorriam nos combros de Santa Comba e, na pressa de confluir no Dão, atravessavam a ciclovia e arrastavam a terra. A atmosfera dava, finalmente, as boas-vindas aos ciclistas. Estes, cautelosos, atrasaram em mais sete dias a volta tão desejada. Pretendiam tratar com respeito a longa jornada, realizando uma voltinha dominical a título de treino. De acordo com os registos de correspondência, a que no tempo do papel se chamava copiador, apresentaram-se dois atletas nos fornos do Patrocinador. o Físico e o Vendedor, que não produziram fotografias nem notícias do evento.

A Primavera veio numa quarta-feira quente e ensolarada. A ciclovia já não precisava de esperar mais. Lançaram-se os planos. O Vendedor e o Periglicófiloo encontram-se com o Físico em Anadia, às oito da manhã, e seguem, de automóvel, para o Vimieiro. Passam, como sempre, pela casinha de Salazar, param defronte da estação ferroviária, retiram as bicicletas, seguem pelo cais, se as obras de há um ano se encontrarem finalizadas, descem pelo caminho de pé-posto, lamentam a terra enlameada e, chegando à ciclovia, batem os sapatos no chão, montam os velocípedes e começam a deslizar, sem pressa, aproveitando a leve descida qie os conduz à ponte sobre o rio Dão.